Quando Sheila Petri decidiu viajar pela primeira vez com seu filho, Otávio, a expectativa era de férias tranquilas ao lado da família. Mas os dias na Bahia foram bem diferentes do esperado. Nem a estrutura de lazer e a brisa do mar mitigaram o despreparo da hotelaria local para receber famílias atípicas como a dela. E casos como o da gerente geral do Marambaia Hotel são recorrentes em todo o país.

“Na minha cabeça, tinha tudo para dar certo. Mandei um email para a direção do hotel explicando as necessidades do meu filho, que é autista. Ele possui algumas particularidades, como o preparo do feijão, por exemplo, que não pode ser temperado. Também solicitei um quarto mais perto da copinha pelas restrições alimentares dele, além de uma acomodação com menos ruído”, conta Sheila.

Ao chegar ao empreendimento e informar que era uma mãe atípica, a gerente entendeu que seu email sequer foi lido. “Todos os dias eu implorava pelo feijão sem tempero. Meu quarto ficava a duas quadras da copinha e eu precisava sair três vezes de madrugada para preparar a mamadeira”, relembra.

Para Sheila, as primeiras férias com Otávio foram um “tormento”, nas palavras dela. “Se eu tivesse dito que meu filho era de Marte seria mais fácil. Não existe conhecimento a respeito e tampouco a capacitação das pessoas para atender famílias atípicas. O que sai na mídia sempre são notícias problemáticas que geram ainda mais estigma sobre o autismo”.

Para evitar novas experiências negativas, Sheila afirma que agora só se hospeda em hotéis certificados e capacitados para acolher famílias atípicas, além de fazer da inclusão uma de suas principais bandeiras como profissional da hotelaria. “A falta de empatia é visível em alguns lugares, assim como a falta de treinamento. Nós não queremos privilégios e prioridades, mas apenas garantir direitos básicos para quem tem necessidades especiais”.

Sheila Petri

Inclusão é uma das bandeiras de Sheila

Mas o que são famílias atípicas?

Resumidamente, a parentalidade atípica diz respeito aos pais cujos filhos têm um desenvolvimento que foge do esperado, do típico, do padrão considerado “normal”. No caso de Sheila, o TEA (Transtorno do Espectro Autista) diagnosticado ainda cedo auxiliou no preparo do Marambaia para acolher hóspedes com outras particularidades.

Especialista em autismo, Lucelmo Lacerda é professor universitário, historiador, psicopedagogo e pesquisador na área de análise do comportamento. Ele explica que o TEA é uma condição do neurodesenvolvimento encontrada em todas as faixas etárias. “Essas condições impõem diferenças significativas de comportamento e percepção do ambiente. Existem três níveis de TEA, sendo alguns mais moderados e outros mais severos”.

De acordo com o especialista, atualmente, uma em cada 36 crianças é autista — quantidade considerável que coloca em evidência a necessidade de adaptações no setor de hospitalidade.

Lacerda explica que as particularidades de pessoas diagnosticadas com TEA variam de dificuldades de comunicação social, comunicação visual, comportamentos repetitivos, movimentos, sons, sensibilidade auditiva e tátil. “São muitas variações, como alterações alimentares e paladar seletivo. Muitos autistas só comem um tipo de alimento, de determinada cor ou formato. São fatores imprevisíveis que mudam de pessoa para pessoa”, afirma.

Para os mais desavisados, tais particularidades podem parecer frescura. Todavia, Lacerda ressalta que é de extrema importância educar a sociedade sobre esses padrões de comportamento. “Colocar um indivíduo que possui aversão a determinadas coisas gera problemas comportamentais. É um equívoco acreditar que são fatores que não devem ser levados em consideração”.

O que os hotéis estão fazendo

Quando Sheila estava grávida do Otávio, ela já respondia como gerente geral do Marambaia. Quando o diagnóstico de TEA veio, os colaboradores acompanharam o processo de entendimento do que é, na prática, uma família atípica. Atualmente, o empreendimento é um dos únicos hotéis de Santa Catarina reconhecidos com o Selo Amigo do Autista.

“Toda família tem direito ao lazer e oferecer condições de acolhimento é essencial. Meu filho tem cinco anos hoje e foi dentro do Marambaia que acompanhei muitas evoluções dele, como a primeira vez que ele abraçou o Papai Noel”, conta Sheila. “Proporcionar isso para outras famílias atípicas não tem preço”, acrescenta.

Dentro da operação, algumas adaptações foram feitas, começando pelo treinamento da equipe. “Capacitamos nosso time para entender o que é o TEA e o que o capacitismo. Em seguida, explicamos as limitações das famílias atípicas”, destaca a gerente.

No momento da reserva, o Marambaia envia um formulário para entender quais as necessidades dos hóspedes, como restrições alimentares, marcas aceitas que possam ser encontradas no destino e alterações no menu. “Se a criança come miojo de carne todos os dias, nós serviremos miojo de carne todos os dias”, salienta Sheila.

Menos luz nos quartos, serviços de room service e adaptações de enxoval são outras possibilidades no Marambaia. “São pequenas coisas que fazem a diferença e demandam muito pouco da operação”, diz Sheila.

O Hotel Fazenda Exclusive Encanto da Roça nasceu com a inclusão em seu DNA. Carla Portela, hoteleira experiente, identificou a falta de empreendimentos preparados para receber crianças autistas e com deficiência. “Muitas ficavam de fora da recreação e outras atividades porque as equipes não eram capacitadas”, revela.

Segundo a idealizadora do hotel, localizado em Itu (SP), assim como o Marambaia, os hóspedes recebem formulários para descrever as necessidades especiais. “Hoje, cerca de 20% das crianças que se hospedam conosco são atípicas. Aos finais de semana, esse número chega a 50%. Nossa equipe é treinada e temos todas as adequações de estrutura, alimentação e sonorização”.

Já o Cana Brava Resort começou seu trabalho de inclusão há um ano, quando a pauta surgiu no Comitê de Sustentabilidade. Ao lado de empresas especializadas, o empreendimento baiano fez ajustes em sua operação. Além dos formulários de necessidades, o hotel não cobra as hospedagens de pessoas com TEA.

“São nossos convidados, independente da idade e do canal de compra. No ato da reserva, quando sinalizado pelos pais, questionamos quais as necessidades daquela família para orientar o time. Nossos monitores são capacitados para receber e ajustar as atividades”, salienta Maitê Teixeira, gerente de Vendas do Cana Brava.

Lucelmo Lacerda

Segurança é fundamental, diz Lucelmo

Recreação inclusiva

Talvez o ponto mais sensível para a inclusão, a recreação é prioridade no Encanto da Roça. Com um recreador exclusivo para cada criança atípica, o hotel também conta com monitores que falam em Libras.

“É um desafio muito grande e depende muito da estrutura de cada hotel. Muitas crianças ficam de fora das atividades por falta de preparo dos times. Os ambientes devem ser pensados e preparados para elas também. A recreação precisa pensar em contextos, como conforto acústico e térmico para crianças com sensibilidade”, avalia Lacerda.

No Marambaia, é comum que muitos pais prefiram acompanhar as atividades de recreação, pelo menos até a adaptação entre a criança e o monitor. “Perguntamos sobre alergias a tintas, sensibilidades a materiais, etc. Mas o principal é respeitar a vontade da criança, se ela quer ou não participar de determinada brincadeira. É uma linguagem de tentativas”, pontua Sheila. O hotel de Balneário Camboriú também disponibiliza abafadores de ruídos para deixar os pequenos mais confortáveis.

“Não existe fórmula mágica, mas é preciso saber conduzir. O primeiro passo é ouvir as famílias, entender as necessidades. Muitas optam pelo Marambaia pelo selo e não nos contam que são atípicas até o momento do check-in. Hoje, quando saio de férias, vou para o mesmo resort, pois sei que a coordenadora de Recreação é uma mãe atípica também. E foi lá que o Otávio pegou siri no mangue, pisou no barro sem chinelo. A recreação tem que deixar a criança voar, pois assim ela volta mais apta para levantar outros voos”, conta Sheila.

O Encanto da Roça ainda aposta em um time de pedagogas, além de reciclagens constantes dos treinamentos. “Temos 90% de feedbacks positivos e uma equipe multidisciplinar que faz o acompanhamento das operações e do atendimento. Os hotéis não possuem esse preparo. Para nós, seria mais fácil não desenvolver essa inclusão, mas é uma missão que abraçamos como propósito da empresa”, enfatiza Carla.

No Cana Brava, as crianças participam de aulas de surfe, circuitos de aventura e caiaque, sempre levando em consideração os desejos e limitações de cada uma. “Também contamos serviço de baby sitters treinados, mesmo não fazendo parte do corpo efetivo do hotel. Para quem tem sensibilidade, ofertamos protetores auriculares e abafadores para que elas fiquem no mesmo ambiente das outras crianças”, destaca Maitê.

As famílias atípicas ainda passam por um check-in diferenciado, momento em que as crianças atípicas recebem um cordão de identificação. “É uma ação nova que estamos implementando para que essas crianças sejam identificadas pelos colaboradores e demais hóspedes. Vamos personalizar e oferecer de lembrança”, revela a gerente de Vendas.

Maitê Teixeira

Tema está ganhando força, avalia Maitê

Segurança

“Vale uma atenção especial para a segurança. A fuga é um fenômeno dentro do TEA e os hotéis devem estar preparados, com recreadores atentos também a rios, piscinas e lagos. Algumas crianças autistas também podem ficar agressivas, então é importante que os monitores estejam capacitados. Até 53% dos autistas podem desenvolver comportamentos agressivos”, alerta Lacerda.

O especialista recomenda que os hotéis se sentem com os pais para entender quais os gatilhos de agressividade e estratégias para acalmar a criança. “No check-in, já entender o que ela gosta ou não, a maneira como lidar com determinadas situações, nível de agressividade, entre outros pontos”.

Uma das medidas de segurança do Cana Brava é acomodar as famílias atípicas em andares térreos ou baixos. “Já operamos com um padrão de segurança nas áreas da piscina e corpo salva-vidas também na praia”, diz Maitê.

“Na minha leitura, a hotelaria está muito distante de ter uma preparação para receber famílias atípicas, salvo raras exceções. Felizmente, novos empreendimentos estão sendo construídos pensando nessa acessibilidade. Flexibilidade é fundamental, pois as variações de particularidades são muitas e os espaços acolhedores, poucos”, completa Lacerda.

Maitê enxerga a inclusão como um passo importante a ser dado no setor, com pautas de diversidade ganhando espaço no debate da gestão. “Muitas empresas estão buscando melhorar. Tanto o turismo quanto a hotelaria começaram a ter esse olhar para a inclusão há pouco tempo. Existe a vontade de abraçar essas pautas, uma vez que vendemos alegria e boas memórias”.

“A maioria das inclusões vem da dor de uma mãe. Pensar como sociedade não deveria vir de dores, mas de políticas públicas e engajamento das empresas”, finaliza Sheila.

(*) Crédito da capa: Caled Woods/Unsplash

(**) Crédito das fotos: Divulgação