Muito se discute sobre a concorrência entre a hospedagem de curta duração (ou short-term rentals) ofertada por aplicativos, como o Airbnb e outros, com a hotelaria.

Isso porque é indiscutível que o setor hoteleiro tem sofrido economicamente com a oferta de tais opções à hospedagem tradicional, o que consequentemente também afeta os empregos ofertados por esse mesmo setor. Ademais, é inegável que o controle exercido pelo Ministério do Turismo através do CADASTUR, com o acompanhamento das fichas e controle de entrada e saída, também sofreu redução.

Por outro lado, em termos de comportamento consumerista, pesquisa realizada por Pedro Cypriano, também articulista do Hotelier News, apurou que os short term rentals costumam envolver prazos de estada de quatro a cinco noites em média por reserva, com maior concentração de quinta a domingo, duas ou mais pessoas por unidade habitacional e maior adesão no segmento de lazer. Já os meios de hospedagem em centros urbanos habitualmente envolvem estadas predominantemente de negócios, por até 2 noites, em média, principalmente nas capitais.

Não obstante, é pertinente que o direito se debruce de forma mais detalhada sobre a definição e distinção entre tais modalidades de hospedagem, bem como sobre a legalidade das ofertas por aplicativo e semelhantes. O STJ já se pronunciou três vezes sobre a questão, mas sempre com base em casos concretos: o primeiro caso, julgado em abril de 2021 (REsp 1.819.075/RS sob relatoria do Ministro Luis Salomão) tratava de oferta de quartos em residências ocupadas – o que poderia competir com B&B (Bed & Breakfast ou Café & Cama), como veremos adiante. O STJ entendeu, nesse caso, que se tratava de contrato atípico de hospedagem, visto que a lei de locações não previa o fracionamento de quartos, admitindo que uma convenção de condomínio exclusivamente residencial possa restringir o uso indevido das unidades que estejam desvirtuando sua natureza residencial para prestar serviços afetos à hospedagem. Note-se, entretanto, que o acórdão igualmente considerou que uma convenção de condomínio poderia permitir a atividade.

No segundo, julgado em novembro de 2021 (REsp 1.884.483/PR sob relatoria do Ministro Ricardo Vilas Boas), houve expressa menção que a forma de disponibilização do imóvel a terceiros (online, plataformas, etc), não é fator decisivo para enquadramento da operação legalmente como hospedagem ou locação, validando novamente que um empreendimento residencial pode ser incompatível com locações de curtíssima temporada; e por fim, em março de 2022, foram julgados os Embargos de Declaração no REsp 1.896.710/PR, sob relatoria do Ministro Raul Araújo, que validaram a tese de que a vedação à locação diária em convenção de condomínio não encerra restrição indevida ao direito de propriedade.

Ou seja, o entendimento que vem prevalecendo no STJ é no sentido de que convenções de condomínio residenciais podem restringir, ou permitir, locações de curtíssima temporada.

Mas não só sob o aspecto da convivência em condomínio a questão precisa ser analisada. Locações curtíssimas podem levar a diferentes padrões de comportamento (ex. maior lavagem de roupa, afetando o meio ambiente, circulação de pessoas em horários e por meios de transporte diferentes….) que podem vir a afetar o zoneamento da região, dentre outros fatores.

Isso porque, mesmo dentre os meios de hospedagem, as exigências de construção e zoneamento variam entre um quarto de hotel, pousada ou flat. Ou seja: precisamos entender e delimitar as diferenças entre os dois tipos de hospedagem e avaliar se há necessidade de melhor regulamentar as locações atípicas.

Dito isso, pendentes de apreciação e melhor delineamento pela doutrina e jurisprudência nacional o assunto quanto aos aspectos legais, precisamos trazer à reflexão: quando uma situação deixa de configurar locação residencial para tornar-se hospedagem regida pela Lei do Turismo (Lei nº 11.771/2008)?

Ora, para tanto, importante voltarmos à definição legal. A Lei do Turismo considera, no parágrafo único de seu art. 2º, que turismo é realizado por “pessoas físicas durante viagens e estadas em lugares diferentes do seu entorno habitual, por um período inferior a 1 (um) ano, com finalidade de lazer, negócios ou outras”, e que tais viagens e estadas devem “gerar movimentação econômica, trabalho, emprego, renda e receitas públicas, constituindo-se instrumento de desenvolvimento econômico e social, promoção e diversidade cultural e preservação da biodiversidade.”

Dentre os prestadores de serviços turísticos, os meios hospedagem são categorizados como “destinados a prestar serviços de alojamento temporário, ofertados em unidades de frequência individual e de uso exclusivo do hóspede, bem como outros serviços necessários aos usuários, denominados de serviços de hospedagem, mediante adoção de instrumento contratual, tácito ou expresso, e cobrança de diária” (art. 23).

Entendo, portanto, em uma análise puramente jurídica, que um dos pontos mais importantes para tal definição e diferenciação trata-se do que seriam os serviços hoteleiros que distinguiriam os hotéis, pousadas e outros meios de hospedagem dessas estadias de curta duração ainda não regulamentadas.

Nota-se, contudo, que não há uma única definição para estes parâmetros, vez que a portaria do Ministério do Turismo nº 100/2011 (art. 7º) distingue os serviços conforme os tipos de meio de hospedagem. Vejamos:

  • Para hotéis em geral, exige-se serviço de recepção, podendo haver ou não oferta de alimentação;
  • Os resorts, sendo hotéis com infraestrutura de lazer e entretenimento, necessitarão também ofertar serviços de estética, atividades físicas, recreação e convívio com a natureza no próprio empreendimento;
  • Hotéis fazenda, situados em ambiente rural, com exploração agropecuária, devem ofertar entretenimento e vivência do campo;
    os B&B devem ocorrer na residência do possuidor, com no máximo 3 unidades habitacionais para uso turístico, mandatoriamente oferecendo serviços de café da manhã e limpeza;
  • Já hotéis históricos, instalados em edificação preservada ou ainda que tenha sido palco de fatos histórico-culturais de importância reconhecida, não têm serviço especial exigido na portaria;
  • As pousadas, compostas de até 30 unidades e 90 leitos, em prédio único com até três andares ou contemplando chalés ou bangalôs, além de recepção devem comportar serviços de alimentação; e
  • Por fim, a portaria considera que os flats ou apart-hotéis – constituídos por unidades que disponham de dormitório, banheiro, sala e cozinha equipada, em edifício com administração e comercialização integradas – devem contemplar serviço de recepção, limpeza e arrumação.

Podemos concluir, então, que serviços de recepção e limpeza são exigidos para a grande maioria das categorias de hospedagem, podendo, ou não, ser acompanhado por alimentação. Seriam esses, então, os serviços que poderiam ser tidos como básicos para fins de qualificação legal como hospedagem? Se sim, havendo manutenção e troca de toalhas, e um porteiro que entregue as chaves da unidade, automaticamente já existiria, juridicamente, uma oferta de hospedagem?

Estes pontos, e outros, ainda estão pendentes de maior categorização pela doutrina e jurisprudência, o que justifica a reflexão proposta neste artigo. Falar aos operadores de mercado e buscar o envolvimento dos players nas discussões técnicas será a melhor forma de alcançar-se uma ordenação jurídica que equilibre os diversos interesses mercadológicos envolvidos.

Ou seja: precisamos falar mais sobre os serviços hoteleiros.

Ana Beatriz é sócia do Perez & Barros Advogados, Masters of Laws pela New York University, Presidente da Comissão de Hotelaria e Multipropriedade do IBRADIM e Membro da Comissão de Direito Urbanístico e Imobiliário da OAB/RJ. Professora dos Cursos de Pós-graduação da CEPED/UERJ, PUC/RJ e ABADI.

(*) Crédito da foto: arquivo pessoal