A hotelaria sempre teve taxas de turnover mais altas do que outros setores da economia, problemática agravada pela pandemia. Não à toa, o segmento de Alojamentos e Alimentação está em destaque entre as indústrias que mais produziram demissões em agosto. Para entender melhor esse contexto, o Hotelier News conversou com especialistas para discutir alternativas para mitigar a questão e apontar estratégias para apaziguar a escassez de mão de obra nos hotéis.

Levantamento da LCA Consultores, baseado nos dados do Caged (Cadastro Geral de Empregados e Desempregados), revelou que os pedidos de demissão bateram novo recorde em agosto. Importante dizer que, do total de 1,77 milhão de desligamentos no mercado formal durante o período, 632,8 mil (35,7%) foram voluntárias, ou seja, o pedido partiu do empregado. Em relação ao estoque de vagas, ou seja, o total de empregos com carteira assinada, o setor de Alojamento e Alimentação foi o que mais registrou pedidos de demissão no mês.

“Encontrar mão de obra em nível de liderança está quase impossível”, afirma Marteen Van Sluys. “Pelo que ouvimos aqui no mercado mineiro, há vagas em aberto de coordenação de Recepção e Reservas, além de supervisor de Governança. Mesmo com boas condições de trabalho, são raros os currículos que chegam”, relata o conhecido consultor hoteleiro mineiro.

Vale dizer que toda sexta-feira o Hotelier News publica um compilado de vagas abertas no setor hotelaria naquela respectiva semana. Mesmo com benefícios e bom salários, sabemos de relatos de hotéis de luxo em São Paulo que enfrentam muita dificuldade de preencher algumas posições, como a de garçom, mesmo pagando quase R$ 7 mil contando gratificações.

Por quê?

Quanto ao motivo para a escassez de mão de obra, os especialistas ouvidos pela reportagem afirmam que são muitos. Desde antes da pandemia, a hotelaria já não oferecia salários muito atrativos. Com a crise sanitária, hoteleiros se viram obrigados a enxugar os quadros e, com isso, fazer com que os colaboradores acumulassem funções. Neste cenário, muitos profissionais acabaram saindo do mercado e não mais voltando, já que buscam mais qualidade de vida, saúde mental e carga horária menor, entre outros fatores atrativos.

Maarten Van Sluys - problemão da hotelaria

Van Sluys: em BH, achar pessoas está difícil

“Com o advento do home office e as demissões em massa que aconteceram durante a pandemia, muitos saíram do setor e partiram para outros mercados mais flexíveis em relação ao formato remoto”, alega Philippe Patay, head de Operações da Hotelaria Brasil. “Além de não precisar se deslocar, esses profissionais também se acostumaram com a remuneração mais elevada. Em muitos casos, estão trabalhando de segunda-feira a sexta-feira, o que torna ainda menos atrativa a carga horária de seis por um da hotelaria”, acrescenta o executivo.

Para complementar o raciocínio, o consultor Andre Matielo diz que, em contato com alguns players do mercado, conseguiu chegar a um conjunto de questões que vêm provocando esse quadro. “Notamos três fatores como os mais preponderantes para afastar mão de obra qualificada do setor”, revela o diretor da Feasi Hospitality, acrescentando que também conversou – de forma anônima – com funcionários e demissionários, bem como com candidatos que ganharam a vaga, mas saíram nas primeiras semanas.

“Do nosso ponto de vista, e pelo que apuramos nessas conversas com empresas e profissionais do setor, a escala de trabalho seis por um, a lentidão pra avançar na carreira e a demora para ter aumentos salariais são os fatores que mais têm afastado profissionais do mercado hoteleiro”, completa.

Lucila Quintino e Tricia Neves, sócias fundadoras da HotelConsult e da Mapie, respectivamente, fazem coro a Patay, especialmente no que tange os profissionais em início de carreira (e mais jovens). Segundo as duas especialistas, esse público busca unir qualidade de vida e o trabalho, gerando necessidades que muitas vezes a hotelaria não oferece. “Essa faixa etária apenas levanta novas questões e exigências que acabam sendo incorporadas por todas as outras idades”, comenta Tricia.

Para a discussão, a presidente do conselho de turismo da FecomercioSP, Mariana Aldrigui, traz outro ponto bastante abordado na pandemia: a saúde mental. “Sentimos a necessidade de desfazer conexões que não fazem bem, demonstrado tanto pelo aumento no número de pedidos de demissões, como o de divórcios”, avalia. “Ainda há muitos gestores que promovem ambientes tóxicos que adoecem as pessoas, o que costuma ser o principal motivo de desligamentos”, destaca.

“Saímos da pandemia fragilizados, muitos perderam familiares, outros estão com a saúde mental abalada. Retornando ao ambiente de trabalho, os funcionários esperam maior acolhimento”, reforça Márcio Moraes, gerente de Planejamento de Carreira da QI Profissional.

Além de todos esses fatores, há ainda a desconexão do meio acadêmico com o profissional. “A maioria dos professores são muito acadêmicos, com pouca experiência prática na hotelaria. Por conta disso, os cursos acabam sendo mais teóricos do que práticos, aumentando a evasão e, consequentemente, formando menos hoteleiros e levando alunos a outros setores”, alega Lucila. “Temos visto muitas empresas novas no mercado, principalmente de tecnologia, que são muito mais atrativas para esses jovens.”

O que fazer?

Como brinca Patay, essa é a pergunta de US$ 1 milhão. “A hotelaria sempre teve que se esforçar para criar atratividade no mercado de trabalho. Sempre há a promessa de ser um trabalho dinâmico, de que não há dias iguais. Agora, a verdade é que não é um mar de rosas: os funcionários lidam com estresse, clientes complicados, questões laborais de esforço físico, trabalho de pé, locais insalubres…”, lista o executivo.

Neste momento em que a situação para atrair talentos é mais crítica, os especialistas acreditam que será necessário dobrar os esforços para tornar os cargos em hotéis mais atrativos. As estratégias citadas, assim como os motivos, são muitas: criar condições para melhor perspectiva de evolução profissional, flexibilização para cargos que podem trabalhar em modelo híbrido, escalas e benefícios diferenciados, investir na formação e capacitação de lideranças e cargos de base, rever a faixa salarial, dar maior atenção ao processo seletivo e reduzir requisitos, entre muitos outros.

Para Moraes, essas mudanças devem começar do início. Segundo ele, o processo de seleção e recrutamento precisa ser aperfeiçoado e ganhar protagonismo, evitando contratações somente por competências técnicas. “Temos que entender que houve uma mudança na expectativa dos profissionais, especialmente sobre trabalhar naquilo que gostam. Portanto, é preciso analisar qual o tipo de perfil comportamental que atende melhor a cada cargo”, explica o gerente.

Também é importante considerar a identificação com os valores e princípios da empresa. Segundo Moraes, a pandemia trouxe a todos uma preocupação com o propósito de trabalho. “As pessoas estão procurando um propósito de vida: qual o meu valor? Por que estou trabalhando aqui? Por que tenho que defender a empresa além da questão financeira?”, exemplifica.

Quanto à dificuldade de encontrar candidatos, Moraes aponta que há uma lacuna na comunicação entre os mercados de trabalho e acadêmico, incluindo cursos livres e técnicos. “A maioria das divulgações de vagas não buscam profissionais que realizaram cursos, que são justamente os que têm maior possibilidade de aderência”, analisa. “Por isso, é importante fazer mais parcerias com instituições de ensino e buscar esses profissionais na base”.

Tricia Neves- problemão da hotelaria

Tricia: trabalho e qualidade de vida combinam?

Segundo Mariana, é necessário também repensar a questão orçamentária e aumentar a faixa de salários. “Com cenário de orçamento restrito, é necessário negociar benefícios, folgas, criar condições para que os empregados enxerguem um caminho de evolução, um plano de carreira para o futuro, com impacto positivo na formação profissional”, afirma. “É necessário transformar internamente as carreiras em algo atrativo, afinal não estamos concorrendo mais com outros hotéis, mas com outros setores”.

Para complementar essas medidas, Tricia também sugere a utilização de tecnologia para aumentar a eficiência e atratividade de cargos com maior qualificação. “A remuneração está muito relacionada à tecnologia, pois conseguimos pagar melhor aqueles funcionários qualificados conforme automatizamos outras etapas”, explica a sócia da Mapie.

Considerando o ambiente de trabalho um fator fundamental para muitos pedidos de demissões, os especialistas indicam a importância de repensar a gestão dos hotéis e a relação com os times. “Ser respeitado, ter voz, participar das tomadas de decisões e reduzir níveis hierárquicos. É uma transformação que não é só da hotelaria, mas do mercado como um todo”, pontua Tricia.

Segundo os especialistas, o investimento em treinamentos e capacitações são cruciais, não só para que clientes não sintam o impacto na experiência, mas também para formar boas lideranças. Considerando que, de acordo com Lucila, um dos principais fatores de demissões são os gestores, a relação com eles e suas percepções, é extremamente importante investir no treinamento de líderes para evitar o turnover na base.

Algumas iniciativas

De acordo com Patay, nos empreendimentos da Hotelaria Brasil há muitos trabalhadores de diferentes países com baixa experiência e qualificação, o que indica que o plano da rede é mesmo investir nas pessoas. “Ao mesmo tempo em que esses profissionais não têm preparo, a dedicação é bastante diferente em comparação com quem já trabalhava no segmento. A vontade que eles têm de aprender uma nova profissão e se desenvolver é surpreendente”, comenta o executivo.

Já na realidade do Grupo Tauá, a hotelaria é a porta de entrada para muitos jovens que, com o tempo, acabam desenvolvendo e criando interesses por outras áreas. “Contratamos pessoas da região onde estão nossos resorts”, afirma Viviane Magalhães, diretora de RH (Recursos Humanos) da rede mineira. “Por isso, damos muito mais destaque ao brilho nos olhos, gosto de atender e servir do que para a experiência. Então, para nós que damos muitas oportunidades de primeiro emprego, estamos acostumados com a falta de qualificação”, pontua.

Considerando a maior busca por planejamento de carreira, ambientes de trabalho saudáveis e mais qualidade de vida, Viviane conta que o Tauá vem desenvolvendo uma série de iniciativas. Além de fazer pesquisas semestrais de clima, promover canais de contato, investir em treinamentos, programa de formação de gestores, e dar muita atenção às entrevistas de desligamentos, a rede desenvolveu a Unisorriso, que oferece cursos além da hospitalidade, como hobbies, educação financeira e línguas.

(*) Crédito da capa: Nayara Matteis/Hotelier News

(**) Crédito das fotos: Divulgação