Observar as evoluções através do passar dos anos é uma boa maneira de enxergar o que deu certo e o que ainda é preciso melhorar. A hospitalidade, como um serviço que atravessa séculos, sofreu muitas mudanças. Assim como caminha a humanidade, o setor hoteleiro se transformou com a chegada de novas gerações. Quando colocamos uma lupa no papel da mulher dentro desse complexo ecossistema, as discrepâncias são gritantes. E, se depender delas, ainda vem muita revolução por aí.

Neste Dia Internacional da Mulher, o Hotelier News ouviu três diferentes gerações de profissionais da hotelaria e suas visões de mercado — principalmente no que diz respeito à inclusão feminina na cadeia produtiva. E apesar das divergências geracionais, uma opinião é unânime: elas querem mais. Mais voz, mais espaço, mais igualdade e mais respeito.

Profissionais com mais de 60 anos compartilharam suas experiências de trabalho e de vida, que refletem grandes saltos em igualdade de gênero no segmento de hospitalidade. Executivas acima dos 40 anos mostram como é estar entre gerações e como aprender com ambas. Já as mulheres na casa dos 20 anos deixam claro como o mundo mudou, abrindo caminho para um futuro ainda mais inclusivo.

Andrea Natal

Andrea tem 40 anos de hotelaria

Um passado que não volta mais

Quando ingressou no setor hoteleiro, há quatro décadas, Andrea Natal vivia a realização de um sonho, mas não com o consentimento do pai. De família conservadora, um hotel não era lugar de mulher. “Era um ambiente muito frequentado por homens e as mulheres naquele local não eram bem vistas”, conta a atual gerente da Soho House & Co.

De personalidade forte, a ex-diretora geral do Copacabana Palace enfrentou a família e tornou-se uma das executivas mais respeitadas e reconhecidas do setor. Aos 62 anos, Andrea afirma que saber impor limites foi uma característica que a ajudou em sua trajetória profissional.

“Antes, não era comum falar sobre assédio e violência psicológica. Quando penso no meu passado, vejo que vivi situações de machismo. Os homens se fechavam em suas próprias bolhas, mas aquilo também não me interessava. Olhando com distanciamento, entendo que sofri assédio moral, mas fui criada para saber me defender e me impor como mulher”, continua.

Desde hóspedes que a convidaram para sair até assédios com mulheres de sua equipe, Andrea sempre foi uma ferrenha defensora de suas colaboradoras. “Nunca virei as costas. E essa postura me ajudou a conquistar espaços. Não aceitava e não aceito desrespeito”.

Uma das lideranças femininas mais conhecidas do setor, Chieko Aoki é referência para muitas mulheres. A CEO da Blue Tree Hotels relembra que, quando iniciou sua trajetória no segmento, era uma das únicas profissionais do alto escalão. “Quando iniciei a minha carreira, não havia muitas mulheres na hotelaria, especialmente nos cargos de liderança, mas sim em áreas específicas como governança e vendas. Contei com a ajuda de grandes nomes do turismo que me ensinaram muito”.

Corroborando com as palavras de Andrea, a Sra. Aoki salienta que sua personalidade curiosa, vontade de aprender, além do fato de não se intimidar com um ambiente majoritariamente masculino foram alavancas para a construção de sua carreira.

“Ser mulher no setor hoteleiro significa ter muitos desafios a enfrentar, mas é preciso enxergá-los como oportunidades de aprendizado e evolução profissional. Ser curiosa, proativa e ao mesmo tempo humana e delicada é um conselho que costumo dar às mulheres que querem crescer profissionalmente”, pontua.

Proprietária do Jardim Atlântico Beach Resort, Nea Machado ingressou na hotelaria após deixar um mercado também tradicionalmente dominado por homens: o ramo cervejeiro. Quando assumiu a operação do empreendimento, aos 48 anos, a executiva já sabia como lidar com o machismo. “Foram mais de 20 anos à frente da cervejaria. Entrei de cabeça e me apaixonei pelo setor. Sempre soube me impor como uma pessoa firme e atenta, o que me fez ser respeitada por clientes, supervisores e fornecedores”.

Segundo Nea, em Ilhéus (BA), onde está localizado o resort, poucos empreendimentos são liderados por mulheres. Com uma equipe majoritariamente feminina, o Jardim Atlântico busca ser veículo de mudança no destino. “Acredito que o machismo está ficando para trás. Muitas mulheres estão liderando em diferentes empresas. Tenho uma filha de 40 anos que lidera em outro setor e é um exemplo”, orgulha-se.

Flavia Zulzke

Flavia é a 1ª diretora de Vendas da Deville

Exemplos a serem seguidos

Nascida e criada na hotelaria, Lizete Ribeiro atua ativamente no setor desde 1996. Hoje CEO do Grupo Tauá de Hotéis, a executiva tem sua mãe, Lizete Chequer, fundadora da rede mineira, como seu maior exemplo de liderança feminina. “A postura dela, a forma de conduzir os negócios e a maneira como ela lida com as pessoas são minhas inspirações”.

Apesar do pioneirismo, nem sempre o caminho foi florido. A CEO conta que enxergava os desafios enfrentados pela matriarca na condução da empresa, principalmente nas atitudes. “Ela era a tomadora de decisões, mas muitas vezes acabava à sombra. Estamos falando de 30 anos atrás. Ainda é difícil ser mulher na hotelaria, mas melhorou muito”.

Aos 50 anos, Flavia Zülzke fez história na Hotéis Deville. Primeira mulher a ocupar o posto de diretora de Marketing e Vendas da rede, a executiva traz em sua bagagem experiências de setores que andam lado a lado com a hotelaria, como a aviação. Por seu papel pioneiro na empresa, ela conta que mulheres do time a enxergam como uma inspiração.

“Fui muito bem recebida pelas mulheres da rede. Para a minha surpresa, muitas me abordaram para dizer que estavam felizes em ter uma profissional feminina no cargo. Às vezes não temos noção do quanto nosso trabalho pode impactar outras pessoas”, avalia a diretora.

Diferenças geracionais

Com o ingresso na Geração Z no mercado de trabalho, as empresas reconheceram a necessidade de fazer adaptações para construir um ambiente condizente com os desejos dos novos profissionais. E, para as hoteleiras mais jovens, machismo não tem vez.

Hannah Barbosa, gestora de Marketing da YAH! — marca de produtos de hotelaria da VCA, reconhece as lutas das gerações anteriores para percorrer um caminho sem grandes atritos no setor. “Graças a elas, conseguimos andar mais rápido em um segmento consolidado. Entendo que as profissionais mais experientes viveram situações que hoje não seriam bem vistas”.

Aos 26 anos, a executiva afirma que seu maior aprendizado foi a firmeza de assumir compromissos. Mesmo com a pouca idade, Hannah já atua em uma posição de liderança conquistada por sua trajetória na empresa. “Não fui uma pessoa colocada no meu posto. Percorri meu próprio caminho para estar aqui. E precisamos falar mais sobre a mulher no mercado de trabalho, ocupar mais espaços, ter mais presença em lugares de destaque. E o papel do homem é incentivar parcerias e novas ideias”.

Executiva de contas na Deville aos 25 anos, Sheila Follador encontrou uma hotelaria mais diversa e inclusiva em comparação com suas colegas mais experientes. Há sete anos na rede, a profissional enxerga o setor como uma referência em igualdade de gênero.

“Percebo que existe uma inclusão muito forte, com muitas mulheres em cargos de chefia na Deville. Acredito que há uma abertura para o debate e sempre me senti acolhida, pois vejo um entendimento das necessidades das profissionais femininas em sua complexidade, que abrange outras jornadas de trabalho”, analisa Sheila.

Para Chieko, as próximas gerações encontrarão um ambiente de trabalho livre de preconceitos, com interações fluidas entre mais jovens e mais experientes, sejam homens ou mulheres. “E que todos entendam que, caminhando juntos com o mesmo propósito, é que se alcança objetivos e resultados extraordinários. Eu desejo que não apenas na hotelaria, mas em todos os setores, tenhamos, em breve, uma sociedade que empodera o maior número de pessoas de todas as condições sociais, raça e gênero”.

A CEO da Blue Tree ainda pontua que, como qualquer mudança geracional, existem lacunas ocupadas por muitas diferenças. Mais confiantes no uso de ferramentas digitais, em busca de maior flexibilidade entre trabalho e vida pessoal, a Sra. Aoki acredita em uma troca genuína entre as gerações.

“É preciso considerar também que os mais experientes têm muito a ensinar e os mais jovens devem estar dispostos a absorver todo esse conhecimento que vem agregado a décadas de experiência. Por outro lado, os mais velhos também devem se abrir para aprender com essas novas gerações, que trazem ideias, buscam soluções para questões que facilitem a vida dos hotéis e dos clientes”, analisa.

Acostumada a trabalhar com colaboradores mais jovens, Andrea tira o melhor proveito dos ensinamentos das novas gerações. Sabendo da necessidade de atualização constante em sua profissão, a executiva afirma que aprende muito com os mais novos. “Fico por dentro de tudo, eles me ensinam coisas que eu não sabia. E, se você estiver aberto, só tem a ganhar. É desafiador, às vezes passamos parte do tempo voltando no passado e lembrando como éramos antes”, reflete.

Com ampla experiência no setor de entretenimento, Flavia é outro exemplo de liderança acostumada a conviver com gerações mais novas. Para a diretora da Deville, a mudança de comportamento é latente, principalmente em questões de diversidade e empoderamento. “É uma geração que chega mais preparada nesses aspectos do que a minha. Coisas que encaramos como normais para eles não são. São temas com muitas camadas e, mesmo como líderes, temos muito o que aprender”.

Sobre a geração mais velha, Flavia avalia que o rompimento de ciclos de erros faz parte do aprendizado. “Absorvemos muito conhecimento dos mais experientes do que é sustentável para os negócios, mas não queremos repetir os erros deles. Acho que a maior lição é entender quais batalhas realmente valem a pena travar”.

Hannah Barbosa

Diretoria é o foco de Hannah

Maternidade e etarismo

Mãe de gêmeas, Hannah admite que conciliar trabalho e maternidade não é uma tarefa fácil, todavia, há alguns anos, o desafio seria ainda maior. “Não foi algo impossível. Confesso que quando descobri a gravidez houve sim o medo de perder o emprego. Minhas meninas nasceram na pandemia, enquanto eu estava em home office. Quando retornei ao presencial, a empresa me deu todo o suporte necessário. Posso dizer que ser mãe nunca foi um problema para a minha carreira, nem de forma velada”.

Quando Flavia engravidou, sua carreira estava decolando. Após se desligar de uma empresa, a executiva estava em fase de entrevistas para novas oportunidades — que não aconteceram. “Perdi recolocações e vagas muito interessantes, o que não seria uma pauta se eu fosse um homem. A licença maternidade influencia, mas não justifica. Na época, ainda me questionaram se eu tinha planos de engravidar novamente”.

Por ter sentido na pele o preconceito, a diretora procura quebrar a roda na Deville. Segundo ela, seu trabalho também passa por desmistificar alguns temas de gênero, além de sensibilizar as equipes com pautas de incentivo à carreira da mulher. “Errei muito no passado e hoje sei o meu lugar de fala. Escuto alguns feedbacks de colaboradoras que se sentem mais tranquilas com uma liderança feminina. Acredito que as diferenças são complementares, não queremos entrar em uma disputa com os homens, mas sim pedir igualdade”, acrescenta.

Andrea já era moradora do Copacabana Palace quando seu filho nasceu — o que facilitou a gestão entre as duas jornadas. A profissional relembra o cuidado da equipe não apenas na maternidade, mas em outro momento difícil de sua vida. “Tive um câncer de mama e fui muito acolhida. Pude me manter no trabalho, pois respondia por uma posição importante. Foi algo que me marcou. Acredito que os homens da nova geração não cometerão os mesmos erros que as gerações anteriores. São mais conscientes”.

Como uma profissional com mais de 60 anos, Andrea reconhece o etarismo no setor e fala sobre como é ser liderada por pessoas mais novas. “É preciso ter maturidade e estar aberta. Ainda estou cheia de gás, gosto de trabalhar, me acho útil. Quando não trabalhamos, envelhecemos mais rápido. Quero ter projetos e desafios. Os 60 foram bem marcantes, com muitos questionamentos. Você passa a pensar mais na finitude, seja ela qual for, mas sempre fui feliz fazendo o que eu faço”.

Também do time das profissionais com mais de 60 e com muita “lenha para queimar”, Nea prevê, ao menos, mais 20 anos de trabalho. “Minha maior vitória foi transformar o Jardim Atlântico em uma referência em Ilhéus. Foi um sonho que se tornou realidade”.

Futuro do setor

Nos próximos 20 anos, a geração que hoje ingressa na hotelaria ocupará os cargos de liderança. Mas será que o setor será muito diferente do que conhecemos hoje? Lizete acredita que as inovações chegarão com mais agilidade, enquanto a tecnologia e o fator humano trabalharão lado a lado de forma mais eficiente. “É uma geração mais bem preparada, com pessoas engajadas que enxergam além do que enxergamos agora”.

Para a CEO do Tauá, a sua geração, mais focada em construir carreira em uma mesma empresa, não reflete a natureza desapegada dos jovens profissionais, sempre à procura de novas trocas e oportunidades. “Temos o desafio de mantê-los interessados e preparados. São profissionais em busca de propósito, se não fizer sentido, eles não permanecem. É preciso ter o sentimento de pertencimento. E realizamos um trabalho de cultura intenso no Tauá que valorizamos muito”.

Nea encara com otimismo o futuro do setor, mas acredita que as diferenças geracionais poderão trazer impactos. “São poucos os profissionais que gostam da operação. É uma geração mais tecnológica que quer mais tempo para si, sem essa carga horária que levamos há 20 anos. A vontade é a mesma, mas a forma de fazer é diferente. Precisamos entender que o que foi bom para a minha geração pode não ser para a atual”.

A proprietária do Jardim Atlântico também não esconde sua admiração pelas mulheres que estão chegando no mercado, pois vê um grande potencial de mudanças positivas no futuro. “Não tenho como voltar atrás do que eu vivi, mas admiro essa turma que está fazendo diferente para ter mais tempo do que nós”.

“Eu venho da época em que a hotelaria era toda manual, sem sistemas de reservas. A tecnologia melhorou muito, mas tornou o setor mais mecânico. Mudou porque tinha que mudar, mas existia um contato maior entre o hóspede e o funcionário”, avalia Andrea. A executiva acredita que a hotelaria do futuro será mais sofisticada, mas sem esquecer do desafio de manter o relacionamento ombro a ombro com o cliente. “Desconectar será o maior problema”, completa.

Maior facilidade de adaptação é o grande trunfo da geração atual na visão de Sheila. Mais aberta a mudanças, essa nova “leva” de profissionais promete um futuro mais unido em termos geracionais e de gênero. “Acredito que é uma geração que carrega a experiência com aprendizado dos mais velhos, porém com uma cabeça mais centrada e com novas ideias. Será um futuro de grandes possibilidades”, continua.

“A hotelaria é dinâmica e está sempre se renovando. O ambiente digital já está imerso em nossas vidas e a tendência é que novas ferramentas surjam para facilitar questões operacionais. Podemos esperar uma maior integração de tecnologias inovadoras na hotelaria como, por exemplo, a inteligência artificial e realidade aumentada. Porém, acredito que o cuidado humanizado será ainda mais valorizado, pois a experiência inesquecível e os sentimentos memoráveis serão idealizados por um atendimento humano. Vale ressaltar que os conceitos de ESG estarão ainda mais presentes nos negócios”, prevê Chieko.

Na próxima década, Hannah espera se consolidar no mercado, ocupando novas posições de liderança, desbravando novos caminhos na empresa que escolheu. “Ainda quero estar entre as diretoras e espero que as profissionais que estão chegando não desistam no primeiro empecilho”.

(*) Crédito da capa: iStock

(**) Crédito das fotos: Divulgação