Há 73 anos, a dançarina e coreófroga norte-americana, Katherine Dunham, aproveitou o intervalo de sua estréia no Theatro Municipal de São Paulo para denunciar o comportamento racista do gerente do Esplanada, luxuoso hotel vizinho ao teatro, que recusou a hospedagem da artista por ela ser “uma mulher de cor”. De lá para cá, muita coisa mudou, mas em pleno 2023 a hotelaria brasileira segue despreparada para receber afroturistas.

A denúncia de racismo por parte de uma estrela internacional mexeu com as estruturas do país. No dia 17 de julho de 1950, seis dias após o ocorrido, o deputado federal Afonso Arinos (UDN-MG) apresentou à Câmara dos Deputados um projeto de lei para tornar algumas atitudes racistas em contravenção penal.

O texto afirmava que, quem recusasse hospedagem em hotel, entrada em estabelecimento comercial, matrícula em escola ou contratação em empresa pública ou privada por preconceito de raça ou cor poderia ser condenado a pagar multa e cumprir até um ano de prisão.

Um ano depois, a Lei Afonso Arinos foi aprovada e ganhou a assinatura do então presidente Getúlio Vargas. Esta foi a primeira norma punitiva para atitudes racistas no país, que seria aplicada pela primeira vez 20 anos mais tarde, em 1970, pela jornalista Glória Maria. Impedida de entrar pela porta da frente em um hotel no Rio de Janeiro, a profissional levou o caso aos tribunais.

Para Hubber Clemente, hoteleiro e fundador do canal no YouTube Negros & Pretos: Afro Turismo e Afro Hotelaria, o fato da Lei Afonso Arinos ter sido criada e aplicada pela primeira vez por casos de racismo em hotéis é simbólico. “Isso mostra que, durante todo esse tempo, não tivemos nenhum foco em desenvolver ações inclusivas e voltadas para o tema”.

Clemente salienta que o problema está na negação e omissão para as pautas antirracistas dentro do setor de hospitalidade. “No Brasil, a maioria das pessoas não verbalizam e não agridem, mas são preconceituosas em pequenas atitudes, principalmente em ambientes como hotéis, restaurantes, etc. Isso torna o turismo como um todo um ambiente inseguro para as pessoas negras”.

hubber clemente

Racismo é negado pelos hotéis, diz Clemente

Representatividade como chave

Em 2021, Clemente foi uma importante fonte para uma reportagem do Hotelier News que abordava a branquitude da hotelaria e a falta de pessoas negras em cargos de liderança. Pois bem, essa falha no segmento vai muito além da diversidade nos quadros de funcionários. Segundo o hoteleiro, as lacunas de representatividade afetam também a forma como os afroturistas são atendidos e percebidos nos empreendimentos.

“Os hóspedes chegam e se deparam com colaboradores que não são parecidos com eles. E isso traz um questionamento de como a maioria da população do país não está representada ali, nem por quem atende, nem por quem frequenta. O racismo é negado pela maioria das empresas de hospitalidade porque elas não acham um problema não ter pessoas negras trabalhando”, analisa Clemente.

O hoteleiro explica que os empreendimentos precisam olhar para dentro e rever suas políticas de diversidade e inclusão, principalmente quando subimos a base da pirâmide. “Os negros estão sempre em cargos básicos, de menor escalão. Quando subimos um degrau, esse percentual cai consideravelmente. Essa questão reflete ainda mais o estranhamento dos afroturistas”.

Capacitações: o pontapé inicial

Ao contrário do que muitos hotéis entendem, o racismo pode sim ser mascarado com um sorriso no rosto. São pequenas atitudes que denunciam o preconceito, como questionamentos no momento do check-in que não seriam direcionados a uma pessoa branca, por exemplo.

Como diversas atitudes racistas são tomadas de forma velada, Clemente explica que grande parte dos hotéis têm dificuldade em assumir o ocorrido. “Muitos se escondem atrás de protocolos e procedimentos. A maioria dos casos de racismo acabam saindo impunes, pois o empreendimento alega que aquela atitude faz parte do processo do estabelecimento, mas que as vítimas passam por situações desagradáveis”.

Para evitar que crimes de racismo sejam cometidos, o setor precisa investir em capacitações e treinamentos. A mudança começa com a conscientização das equipes e lideranças, além de promover uma hospitalidade inclusiva na prática e não apenas na propaganda.

“Vejo muitos hotéis colocarem pessoas negras em suas divulgações sem condizer com a realidade do atendimento e frequência. Muitos nunca realizaram um treinamento pensando nos afroturistas e na inclusão de pessoas negras. É preciso consolidar uma mentalidade inclusiva de verdade, com capacitações constantes e ações de diversidade com funcionários negros”, recomenda o profissional.

Clemente, que também é consultor hoteleiro sobre a pauta racial no setor, salienta que trazer um especialista para promover os treinamentos é fundamental. “Quando você trata do assunto com uma pessoa que já entende da indústria, a inclusão acontece de maneira mais ágil e completa”.

Todos os departamentos dos hotéis são recomendados para participar das capacitações, mas as áreas de contato direto com o hóspede devem ser prioridade, como recepção, A&B (Alimentos & Bebidas), eventos, etc.

Bia Moremi

Setor é mal preparado, avalia Bia

Como agir

Com tantas pessoas entrando e saindo diariamente dos hotéis, é preciso estar preparado. Quando um crime de racismo acontecer, Clemente enfatiza que a primeira atitude a ser tomada é acolher a vítima sem relativizar o ocorrido. “Descredibilizar a vítima é uma agressão absurda, assim como fazer perguntas ofensivas”.

O hoteleiro afirma que se colocar à disposição para auxiliar a vítima com denúncias às autoridades, fornecimento de provas caso necessário, como imagens e testemunhas, é fundamental.

“Quando o caso é interno, o hotel deve deixar um canal de denúncias ativo para tratar e receber essas demandas. Um RH (Recursos Humanos) bem treinado é importante para fazer esse encaminhamento e nunca deixar que uma denúncia não seja apurada, pois mostra cumplicidade com o agressor”, pontua Clemente.

A prevenção, contudo, ainda é a melhor estratégia. O hoteleiro ressalta que treinamentos e capacitações são ferramentas para evitar que casos de racismo aconteçam. “A principal pergunta que o hotel deve fazer é: o que eu fiz para não acontecer? Entidades e associações do setor também não falam sobre o assunto”.

O lado do cliente

CEO da Brafrika Viagens — agência especializada em afroturismo — Bia Moremi enfrenta desafios diários para proporcionar uma boa experiência para seus clientes. Há mais de quatro anos no mercado, a empresa atua em sete estados brasileiros, dois países europeus e duas nações africanas.

Atualmente, a base de clientes da Brafrika é composta por 79% de mulheres negras, seguido por mulheres brancas, homens brancos e, por fim, homens negros. “A população negra não foi educada para enxergar as viagens como um investimento e uma forma de se conectar com a sua negritude, principalmente homens negros”, diz a empresária.

Quando o assunto é hospitalidade, Bia afirma que o setor é mal preparado para receber afroturistas. E a situação piora quando os hóspedes são brasileiros negros. “Muitos confundem cordialidade e hospitalidade com um comportamento antirracista. A hotelaria brasileira não é suficiente para oferecer uma experiência antirracista para o viajante, mas o atendimento é melhor quando são negros estrangeiros. Existe um serviço diferenciado”.

A CEO da Brafrika conta que já passou por casos de clientes que denunciaram atitudes racistas, mas que o hotel chegou a negar o crime. “Cordialidade não é antirracismo. O gerente negou o crime pelo fato do atendente estar sorrindo nas imagens de câmera. Assim como as mulheres que sofrem assédio, uma pessoa que sofre racismo também fica sem saber como reagir. Nenhum empreendimento sabe responder com assertividade quais ações serão tomadas em casos como esse”.

Em seu processo de curadoria de hospedagens, a Brafrika realiza uma série de reuniões com os gestores para pontuar possíveis atitudes racistas no atendimento e questionar quais ações serão tomadas. “São muitas horas de conversa e muito desgaste para ter um atendimento redondo. Procuramos atuar com empresas com preços competitivos e consultamos avaliações nas plataformas para acompanhar a opinião dos clientes. Uma vez escolhido, procuramos saber quais políticas antirracistas aquele hotel adota”, explica.

Bia ressalta que o setor de turismo precisa adotar políticas públicas efetivas para mudar esse cenário, enquanto a iniciativa privada deve desempenhar o seu papel na luta antirracista. “É um compromisso da sociedade como um todo. Parece uma utopia, mas é a única resposta que encontro. Se um ambiente é seguro para uma mulher negra, ele será seguro para todos”.

Tânia Neres

Futuro será inclusivo, afirma Tânia

Políticas públicas

Sabendo das dificuldades de promover um ambiente inclusivo para afroturistas, a Embratur vem desenvolvendo uma série de ações para reverter o quadro. Tânia Neres, coordenadora de Afroturismo, Diversidade e Povos Indígenas da entidade, explica que a criação do departamento foi o primeiro passo.

“É uma área que não existia e foi pensada no desenvolvimento de mercado, pois também há uma necessidade de crescimento econômico. O mercado afro é jovem e precisamos destacar o protagonismo dessa parcela que representa 54% da população do país. Encontramos pessoas negras atuando apenas em cargos para servir e divertir, mas sempre na subserviência”, pontua Tânia.

A coordenadora revela que o afroturismo norte-americano, por exemplo, gasta US$ 109 bilhões à procura de identificação cultural em outros destinos. “Como o Brasil tem uma população negra expressiva, acaba sendo um destino muito buscado. Logo, esse viajante espera ser atendido por outra pessoa negra e não é”.

Trazer a representatividade para a ponta do debate é uma das prioridades da Embratur, que busca fomentar a atuação de pessoas negras em todos os elos da cadeia produtiva do setor. “Estamos conversando com a Anac, Infraero e empresas aéreas para desmistificar essa questão dos negros viajando. Precisamos olhar esse mercado de forma rentável, com muitas plataformas online procurando o Brasil. A inclusão eleva o PIB e precisamos crescer não apenas entre o público norte-americano. Nossa meta é estar entre os cinco países mais procurados por essa comunidade”, acrescenta Tânia.

A entidade também firmou parceria com o Sebrae para promover workshops e capacitações em destinos brasileiros, além de criar o Embratur Lab – que atua no mercado digital para proporcionar o desenvolvimento tecnológico de agências focadas em diversidade.

“Também fechamos com o Google para ampliar as capacitações desses negócios, com ensinamentos sobre redes sociais. A ideia é que essas agências sejam vistas pelo mundo para vender o Brasil para todos os lugares. A Diáspora.Black, por exemplo, é uma plataforma de diversidade que atua no mercado de vendas de destinos afrocentrados que capacita empresas sobre a questão de inclusão no RH”, salienta a coordenadora.

Outra iniciativa relevante é o Disque 100 — canal de denúncia de violações de direitos humanos criado pelo Ministério dos Direitos Humanos e Cidadania. “O racismo não acontece apenas no turismo, mas em todos os setores e os casos devem ser direcionados para o mesmo lugar”, avalia Tânia.

A Embratur, em parceria com o Ministério da Igualdade Racial, também está mapeando as cidades com mais denúncias de racismo no país. A proposta é construir roteiros turísticos para tratar a pauta, as chamadas Rotas Negras. “São nesses destinos que precisamos começar. O turismo tem essa capacidade econômica e social de desconstruir essas questões”, diz a coordenadora.

Por fim, Tânia acrescenta que a Embratur realiza press trips e fam tours com jornalistas de diferentes países para apresentar o turismo brasileiro. Ela ressalta que a proposta do afroturismo não é excluir outras parcelas da população, mas promover a inclusão de todos.

“Os brancos são os nossos melhores aliados, pois o racismo estrutural só vai acabar com ações conjuntas. É um comportamento intrínseco que precisa ser desconstruído no olhar dessas pessoas. E a informação é a melhor ferramenta. O futuro é diverso e inclusivo. E temos feito qualificações para promover um turismo antirracista, anticapacitista e contra a homofobia”, finaliza.

(*) Crédito da capa: Heitor Salatiel/Guia Negro

(**) Crédito das fotos: Divulgação