Os motivos são variados, desde crise gerada pela pandemia, falta de engajamento dos colaboradores a preços incompatíveis com os serviços prestados. Certo mesmo é que a queda na qualidade da entrega do setor é mais um desafio que os hoteleiros estão enfrentando, mas, da mesma forma que as razões para a causa do problema são muitas, as soluções também apontam para diferentes caminhos.

Não custa relembrar o que foi compartilhado na matéria que abriu essa série de reportagens: dados compartilhados pela TrustYou revelam que o índice de qualidade da hotelaria caiu 1,61% de 2019 a 2022. Já a avaliação dos serviços entregues pelo setor recuou 1,45% em igual período. Poderia parecer pouco se a plataforma europeia não tenha identificado uma alta de 15,1% no número de avaliações negativas frente ao último ano antes da pandemia.

Para Trícia Neves, sócia da Mapie, a crise na qualidade é anterior à pandemia de Covid-19. “É uma questão que foi apenas agravada nos últimos anos. Pioramos a qualidade de capacitação das pessoas e, somado ao impacto emocional das equipes, com profissionais menos dispostos a lidar com ambientes tóxicos e escalas com alto volume de horas trabalhadas, atingimos o cenário atual.”

A executiva salienta que, para melhorar a entrega, é preciso ir a fundo na raiz do problema, que passa diretamente pelas lideranças. “Os líderes estão menos disponíveis para dar suporte aos times. Existe uma mudança de comportamento dos gestores que agravou uma lacuna que já vinha se arrastando antes da pandemia”, acredita a sócia da Mapie.

Entendendo o cenário

Marcelo Boeger, consultor da Hospitalidade Consultoria, explica que a queda de qualidade não é um problema apenas da hotelaria. “Existem fatores que fazem com que isso aconteça, não só colaboradores menos engajados. Por isso, é necessário ter um olhar mais amplo para identificar essas questões. Houve mudanças no tipo de consumo no setor. A jornadas de compra digital é um grande exemplo disso”, explica, em entrevista ao Hotelier News.

Qualidade - Marcelo_Boeger

Boeger analisa fatores que diminuem qualidade

“São novos hábitos de consumo que a pandemia gerou. Não é algo negativo, mas o mercado precisa se adaptar. Se usamos um modelo que funcionava anteriormente, ele não necessariamente atenderá às expectativas do consumidor de hoje. Quando o cliente pensa em serviços hoteleiros, as expectativas e necessidades precisam ser entregues”, afirma.

“Ninguém mais quer contato humano desnecessário. As pessoas buscam agilidade e rapidez. Por isso, este deve ser precioso e valoroso, e é isso que determina a qualidade. As pessoas precisam estar preparadas para esse atendimento, e é algo que não aconteceu por conta da cultura de muitas empresas”, complementa Boeger.

O especialista explica que, hoje, os profissionais são mais voláteis em relação à permanência nas empresas, o que para ele se transformou em um fator determinante no mercado de trabalho. “Isso exige uma mudança de modelo mental de quem emprega, de quem lidera, envolvendo diversos fatores”, acredita Boeger

“As propostas profissionais precisam ser mais atrativas”, continua.

Soluções

Boeger pontua que os programas de qualidade são uma excelente oportunidade para mudar o cenário. “Implementar programas de qualidade passa, obrigatoriamente, pelo mapeamento de processos. O hoteleiro precisa identificar todos aqueles que contribuem para a experiência do hóspede, além de ter uma liderança que extraia o melhor dos colaboradores, com foco no desenvolvimento deles”, salienta.

“A equipe precisa estar preparada para todos os tipos de situações. As competências para cada função precisam ser reestruturadas. A qualidade é mensurada não só do balcão para fora. As metas precisam ser discutidas e celebradas. Além disso, a integração dos colaboradores deve ser mais valorizada”, comenta.

O consultor ressalta a importante participação do time de colaboradores para o aumento da qualidade na hotelaria, mas o papel da organização é ainda mais relevante. “Alinhar os valores do colaborador com o da empresa é vital, assim como trabalhar bem estratégias de employer branding, de forma que o profissional sinta orgulho de trabalhar naquele local, naquele empreendimento. Em paralelo, as liderança precisa entender as competências dos colaboradores. É isso que faz a diferença”, avalia.

Resumindo, Boeger destaca que o setor precisa olhar para o colaborador e ressignificar o trabalho, gerar senso de pertencimento e contribuição, criar o entendimento de quais metas estão sendo cumpridas. “O avanço na qualidade passa por esses processos. Hoje, não existe um profissional totalmente pronto para esse novo comportamento do consumidor”, acredita.

“Então, a adaptação a esse novo cenário só é possível com capacitação, desenvolvimento e revisão de todos os processos. E isso vale para absolutamente todos os negócios, mas isso é ainda mais sensível no setor de serviços. Na hotelaria, a jornada de trabalho é difícil, e essas pessoas têm que ser preparadas”, finaliza.

tricia neves

Problema é anterior à pandemia, diz Trícia

Treinamentos: solução eficaz ou paliativa?

Capacitação é um tema que está na boca do setor desde que a escassez de mão de obra se mostrou um problema latente. Entretanto, treinar os profissionais pode ser uma medida superficial.

“Vejo o treinamento como um remédio para dor de cabeça: funciona, mas sozinho não possui um efeito duradouro. É uma solução que é eficaz temporariamente. Os hotéis devem ir na raiz do problema, como identificar se a falha vem da liderança, se são os processos pouco claros, estrutura de governança ou até mesmo o uso de softwares e outras tecnologias que travam”, exemplifica Trícia.

Repensar processos operacionais junto aos times é uma saída relevante. Ouvir quem está na linha de frente e promover a reflexão de possíveis problemas é uma forma de construir soluções conjuntas mais eficientes e menos paliativas.

Lucila Quintino, CEO da HotelConsult, concorda que apenas os treinamentos não resolvem a questão sem o trabalho de atratividade para os profissionais. “Este é um assunto que vem sendo muito debatido. Não estamos formando tantos hoteleiros e os jovens não se interessam pelo setor. Temos que atuar em conjunto com instituições de ensino para trazer essas pessoas para perto com a perspectiva de uma carreira”, diz.

Diretora de Operações da HotelConsult, Patricia Garcia destaca que o gestor é uma das forças que impulsionam a retenção de talentos. “O líder precisa se preocupar com a base. O treinamento não passa apenas pela sala de aula, mas está na atenção a cada detalhe, na empatia com o funcionário e na criação de ferramentas de atratividade”, acredita.

Promover treinamentos específicos para determinados aspectos de melhoria é um caminho, mas é preciso pensar na jornada do hóspede em todos os pontos de contato. “A experiência vai desde a reserva até o check-out. A qualidade deve estar em todas as pontas. Os treinamentos podem ser direcionados ou abranger diversas frentes”, acrescenta Patricia.

Um bom plano de ação alinhado ao treinamento é uma das combinações mais recomendadas pelas profissionais. “Capacitação deve ser uma constante. Não pode deixar de fazer, mas deve ser pensada dentro de um programa para cada cargo e departamento. E o papel do líder é essencial neste momento para promover as devidas correções e feedbacks”, complementa Lucila.

A CEO da HotelConsult também avalia que muitos hotéis investem milhões em suas aberturas, mas esquecem itens básicos do dia a dia, como um site com boas fotos e informações, além de pessoas preparadas para atender aos hóspedes. “É impressionante como muitos deixam esses pontos de lado.”

hotelconsult

Lucila e Patricia, da HotelConsult

O efeito dos programas de qualidade

Grandes redes, por muitas vezes, utilizam um script próprio de qualidade para manter o padrão dos serviços. Todavia, é preciso lembrar que não existe receita pronta para um setor tão complexo. “Muitas vezes, um hotel não possui uma auditoria, mas as equipes contam com um senso de responsabilidade tão grande que dispensa o desenho de programas de qualidade”, diz Trícia.

Vale ressaltar que tais iniciativas são válidas e podem auxiliar na entrega, mas se faz necessário que as medidas sejam implementadas na prática. “Acreditamos nesse sistema, mas não adianta desenhar um manual e deixá-lo esquecido na gaveta. Os programas precisam incluir o olhar das pessoas com o pilar de engajamento das equipes”, acrescenta a sócia da Mapie.

Engajamento dos colaboradores

A queda no engajamento dos times é uma das causas apontadas por Trícia para o recuo na percepção da qualidade das entregas. Novamente, os dedos se voltam para as lideranças e seu imprescindível papel na gestão dos empreendimentos.

“Uma pesquisa da Gallup aponta que 13% dos funcionários globais estão engajados com seus trabalhos. Ou seja, 87% das pessoas estão indiferentes ou pouco motivadas. É um número muito baixo”, observa a sócia da Mapie. “E grande parte dos estudos mostram que o engajamento está diretamente ligado às lideranças e suas atitudes”, reforça.

Trícia destaca ainda que, ao contrário do que grande parte do setor faz, os treinamentos e capacitações de qualidade não devem ser restritos a departamentos de atendimento, como Reservas e Recepção, mas começar pelo topo da pirâmide.

“É um conjunto de fatores, como posicionamento de mercado, processos, estrutura, sistemas e etc. A liderança precisa observar e entender o que, de fato, não está funcionando. Qualidade e gestão andam lado a lado”, reitera a especialista.

Já Patricia, da HotelConsult, credita à desmotivação dos times aos processos internos oriundos da pandemia. “Muitas equipes tiveram que praticamente realizar uma nova implantação para as reaberturas e o treinamento não aconteceu. O hotel que era bom acabou deixando a qualidade cair pelo fato de recontratar o quadro de funcionários do zero”, explica.

Promover um bom onboarding para quem está chegando pode ser o diferencial para um bom engajamento nas contratações. “É na chegada que o profissional percebe o tipo de hotel e de ambiente. Agregar a jornada do colaborador ao papel da liderança é fundamental, pois os maiores motivos de demissões são os gestores. Outro ponto é a realização de uma trilha de carreira para a construção de uma perspectiva de crescimento”, reforça Lucila.

Patricia finaliza lembrando que, nos dias atuais, as avaliações negativas não estão relacionadas a uma cama mal arrumada, mas a problemas comportamentais dos colaboradores. “A pontuação acaba caindo por uma resposta atravessada no atendimento. A cama, cada hotel faz do seu jeito, mas a forma como o funcionário se porta, se apresenta e reage a situações adversas são razões pelas quais as pessoas são demitidas”.

* Colaborou Lucas Barbosa

(*) Crédito da capa: Nayara Matteis/Hotelier News

(**) Crédito das fotos: Divulgação