A cena não é incomum: um simpático recepcionista, de lencinho no pescoço e sorriso no rosto pronto para atender os hóspedes que adentram o lobby dos hotéis no Brasil. Esse profissional também pode ocupar outras posições, como concierge e guest relations. Chega a ser quase estereotipado o papel do homem gay e cisgênero na estrutura de uma operação hoteleira. Entretanto, quando abrimos o leque, essa “diversidade” desaparece. Ao subir para cargos mais altos na pirâmide, os membros da comunidade LGBTQIAPN+ são praticamente nulos. E sua pluralidade dentro da própria sigla também.

Ainda em tempo de colaborar com a reflexão do setor no Mês do Orgulho LGBTQIAPN+, celebrado em junho, o Hotelier News traz uma nova provocação: onde estão as lideranças LGBTQIAPN+? Bem, a resposta você já deve saber: elas são quase inexistentes. Mas antes, é preciso ressaltar que esta não é uma lacuna exclusiva da hotelaria.

A consultoria global GPTW (Great Place To Work) divulgou em 2022 os resultados da pesquisa D&I (Diversidade e Inclusão), desenvolvida com o objetivo de mapear a representatividade de minorias sociais no ambiente de trabalho. E os resultados não são nada surpreendentes.

O levantamento revela que a grande maioria dos executivos em cargos de chefia, direção e presidência são pessoas cis heteronormativas (92%). Ou seja, se identificam com o gênero atribuído a elas no nascimento e são atraídas sexualmente pelo gênero oposto.

Em linhas gerais, apenas 10% dos funcionários que participaram da pesquisa se autodeclaram LGBTQIAPN+. Quando subimos a régua para posições de gestão, apenas 8% representam essas minorias. Para cargos de presidência, o percentual cai para 6%.

Raphael Chagas

Falta de dados gera invisibilidade, diz Chagas

Novos recortes

Consultor e formado em Hotelaria, Raphael Chagas tem ampla experiência em turismo e hospitalidade. Seu currículo ostenta passagens pela Disney, onde atuou por cinco anos, Renaissance, entre outras marcas reconhecidas do mercado, como Costa do Sauípe.

Chagas, que se identifica como homem gay cisgênero, transitou por áreas como RH (Recursos Humanos) e Desenvolvimento. Como consultor, tocou projetos para Hilton e Fasano para treinamentos, liderança e encantamento do hóspede.

Durante a pandemia, o profissional iniciou projetos que dariam frutos importantes, como o documentário Corpos Invisíveis – que fala sobre a falta de representatividade LGBTQIAPN+ no mercado de trabalho. E a chamada “invisibilidade” também seria o ponto de partida para uma pesquisa que reforça os dados do GPTW.

“Sou um homem gay que foi acolhido pela hotelaria, mas não encontrava pessoas autodeclaradas em sua diversidade em posições de liderança. Então, comecei a me articular e fazer pesquisas. Percebi que nos formulários de contratação não existia a solicitação de nome de registro e nome social, por exemplo. Ou seja, as empresas não fazem esse senso”, explica o consultor.

Tais indagações levaram Chagas a desenvolver um estudo em hotéis, restaurantes, bares, lojas de varejo e indústria alimentícia para entender qual o recorte de pessoas LGBTQIAPN+ no ambiente trabalhista. No total, foram 35 empresas mapeadas, 1,3 mil lojas/hotéis/restaurantes com 41 mil colaboradores em mais de cinco estados do país. Vamos aos números:

✅ Empresas que realizam seu próprio senso demográfico incluindo os parâmetros LGBTQIAPN+: 6%

✅ Pessoas LGBTQIAPN+ autodeclaradas em cargos de liderança: 0,5%

✅ Pessoas Trans ou Travestis contratadas: 1%

✅ Percentual de empresas que possuem comitê formalizado LGBTQIAPN+: 6%

✅ Total de homens cisgêneros heteronormativos brancos em cargos de liderança: 89%

✅ Pessoas pretas ou pardas LGBTQIAPN+ contratadas: 1%

✅ Práticas afirmativas LGBTQIAPN+: 12%

✅ Prática afirmativa mais usada: divulgação de vagas que inclui ou menciona “somos uma
empresa diversa”. 

✅ Empresas que adotaram a prática do nome social em formulários, crachás ou sistema interno: 6%

✅ Pessoas interssexuais contratadas: 0%

✅ Empresas que possuem verbas destinadas às causas LGBTQIAPN+: 6%

✅ Empresas que possuem cotas de vagas LGBTQIAPN+: 0%

✅ Empresas que aplicam treinamentos ou ações de acolhimento para a população LGBTQIAPN+: 3%

✅ Empresas que possuem políticas internas para preservar a população LGBTQIAPN+: 6%

✅ Pessoas que entendem a sigla ou o movimento social (mostra de 250 pessoas): 2%

✅ Pessoas que já trabalharam, trabalham ou conhecem uma pessoas Trans ou Travesti no trabalho(mostra de 250 pessoas): 1%

✅ Pessoas que já trabalharam, trabalham ou conhecem uma pessoa gay no trabalho(mostra de 250 pessoas): 38%

✅Percentual de pessoas que já trabalharam, trabalham ou conhecem uma pessoa lésbica no trabalho(mostra de 250 pessoas): 21%

✅ Percepção ações de preconceito, privação de oportunidades ou exclusão na população LGBTQIAPN+: 68% (mostra 250 pessoas).

“Se não existe um senso da companhia, fica clara a invisibilidade dessas pessoas. E, consequentemente, o gay afeminado na recepção dá uma falsa sensação de diversidade. É preciso ter instrumentos e ações afirmativas para incluir essas minorias no ambiente trabalhista”, salienta Chagas.

O autor da pesquisa ainda salienta que muitos Comitês LGBTQIAPN+ são liderados pelo departamento de RH, quando deveriam contar com uma pessoa da própria comunidade para implementar ações afirmativas efetivas.

Antonietta Verlese

Capacitação é prioridade, pontua Antonietta

Falta de dados

Ontem (28), divulgamos a carta de drinks desenvolvida por Rochelly Rocha, mulher trans que atua no Hilton Copacabana. A profissional se capacitou no projeto Trans Garçonne, que visa incluir pessoas trans no mercado gastronômico. A bartender do hotel carioca, ainda que não ocupe uma posição de alto escalão, é um exemplo claro de como a capacitação pode mudar vidas.

Para Chagas, principalmente em casos de pessoas trans e travestis, o preconceito é ainda mais latente. “É uma população muito marginalizada que as pessoas sempre associam às práticas sexuais. Esta é uma minoria que estoura a bolha social de masculino e feminino. Já imaginou uma CEO ou diretora travesti? Com sapatos de salto alto e cílios postiços?”, questiona o consultor. “Essa apresentação logo elimina essas profissionais do processo seletivo”.

A Accor talvez seja um dos exemplos mais conhecidos dentre as redes hoteleiras que apoiam a comunidade LGBTQIAPN+, com grandes ações voltadas para o consumidor. Dentro de casa, o grupo francês é nota nove em sua pesquisa anual realizada em nível global quando o tema é diversidade. O levantamento é feito com colaboradores que optam por trabalhar na empresa não apenas pelo fator salarial, mas por sua cultura, segundo Antonietta Varlese.

A vice-presidente Sênior de Comunicação, Relações Institucionais e Sustentabilidade para a América do Sul explica que a rede não possui um senso de pessoas autodeclaradas, mas afirma que a rede vem desenvolvendo um estudo mais amplo de inclusão e diversidade.

Parceria do Fórum de Empresas LGBT, a Accor incluiu essas minorias em sua estratégia global em 2020, com ações impulsionadas pela América do Sul. Antonietta explica que uma das principais preocupações da rede é a capacitação e contratação de seus colaboradores.

“Realizamos treinamentos sobre pronomes e nome social, por exemplo. Sabemos da importância do acolhimento dessas pessoas. Em 2019, fizemos um recrutamento apenas com profissionais trans em algumas feiras de diversidade. Na época, sete candidatos foram contratados”, pontua a executiva. “Precisamos orientar melhor para dar oportunidades para esses profissionais crescerem de forma competitiva”, complementa.

Na Aviva, o programa DIA, de diversidade e inclusão, é o responsável por estruturar as ações da empresa. O grupo, que defende pautas de minorias, contratou uma consultoria para entender suas falhas internas. De acordo com Laini de Melo Silva, gerente geral de Experiência de Talentos Humanos, a companhia tem políticas inclusivas em sua cultura empresarial.

“Temos muitas pessoas autodeclaradas LGBTQIAPN+. Elas usam o nome social no crachá e respeitamos a forma como esses colaboradores querem ser identificados. E essa iniciativa passa por toda a comunicação interna, como email. Não temos dados quantitativos apurados, mas trabalhamos com nosso guia de diversidade”, diz Laini.

No Selina, foi implementado em 2021 a possibilidade de inclusão de informações sobre gênero e pronome de tratamento em seu sistema com o objetivo de monitorar a representatividade das equipes. Vale destacar que o preenchimento das lacunas é voluntário e não se trata de uma pesquisa, mas sim parte do registro dos colaboradores.

“Hoje não temos campos de identificação de orientação sexual e tão pouco faz parte da nossa cultura perguntar sobre a orientação sexual da pessoa candidata ou funcionária. No entanto, entendemos que mensurar é importante para o estabelecimento de políticas e processos, mas preferimos mostrar através de nossa Cultura Selina que somos uma empresa aberta à todes, pois sabemos que práticas de identificação e mensuração devem ser conduzidas com cuidado, respeitando a privacidade dos nossos conectores e as leis de proteção de dados”, comenta João Dantas, diretor de RH para América do Sul.

joão dantas

Dantas é exemplo de liderança LGBTQIAPN+

Lideranças LGBTQIAPN+

Exceção à regra, Dantas é um exemplo de liderança LGBTQIAPN+ no setor hoteleiro. Homem gay cisgênero, o executivo reconhece que mesmo o Selina é uma empresa majoritariamente comandada por homens brancos, cisgêneros e heterossexuais.

“Entendemos que esse é um problema complexo e multifacetado que se estende além dos nossos balcões de recepção, pois afeta o setor hoteleiro e outras indústrias e campos de trabalho. Como pessoa LGBTQIAPN+ e profissional de Recursos Humanos, vejo que são vários fatores que contribuem para a falta de representatividade, em percentual correspondente ao apresentado na sociedade, em cargos estratégicos e de liderança”, diz Dantas.

O diretor salienta que o preconceito que permeia a sociedade ainda é latente no ambiente de trabalho como um todo. “Isso se manifesta de várias maneiras, desde micro agressões até práticas de contratação injustas, pouco empáticas e permeadas por vieses conscientes e inconscientes. Crescemos sem ver semelhantes chegando a cargos de liderança e passamos a acreditar que não podemos acessar esses lugares de poder”.

Segundo o executivo do Selina, o setor ainda é carente de bons mentores e suporte institucional para o desenvolvimento de carreira desses profissionais. “Desta forma, nós da comunidade LGBTQIAPN+, caminhamos ao longo de nossa formação como indivíduos e como profissionais sofrendo outras carências. Começamos qualquer processo seletivo precisando nos esforçar mais, provar mais e ainda arriscando sermos avaliados de forma enviesada”.

Para Laini, ser diverso é uma coisa, ser inclusivo e oferecer equidade, é outra. “Contamos com políticas que permitem que essas pessoas enxerguem possibilidades na Aviva. A autodeclaração ou não é opcional, mas nossa política oferece oportunidade para que os colaboradores cresçam independente de gênero e sexualidade”.

Ambiente acolhedor

Antonietta salienta que o elevador social da Accor contribui para o crescimento da empresa. A vice-presidente pontua que a rede planeja traçar novas metas e objetivos quando seu senso de diversidade for concluído. “Temos algumas cotas para mulheres, PCDs e pessoas negras, com o objetivo de ter essas pessoas ocupando até 40% dos cargos de liderança”.

Definir ações afirmativas, comunicação interna inclusiva e criar comitês são ótimas iniciativas, mas ainda insuficientes. Chagas destaca que as empresas devem estar atentas aos direitos da comunidade LGBTQIAPN+, como folga de licença matrimônio após o casamento. “É preciso orientar e garantir direitos que muitas vezes essas pessoas nem sabem que têm. Fazer letramento de pronome é superficial demais”.

“Nesse momento, o time de Pessoas da Regional América do Sul, do qual o Selina Brasil faz parte, está trabalhando na elaboração de uma Política de Diversidade & Inclusão que atuará em cinco pilares, são eles: Pessoas da comunidade LGBTQIAPN+, mulheres, pessoas negras e pardas, pessoas com deficiência e pessoas 50+. Esse documento será publicado no segundo semestre deste ano e trará, além das normas para o fomento e a proteção do direito de sermos quem somos, um programa de treinamento, iniciativas de recrutamento direcionadas, grupos internos de discussão, e/ou outras ações que promovam a inclusão e apoiem as minorias e as comunidades menorizadas”, revela Dantas.

Para promover o acolhimento, o Selina afirma que coloca as pessoas no centro de sua cultura, com encontros mensais de compartilhamento de opiniões, além de contar com um sistema de denúncia em caso de preconceito praticado por clientes ou colaboradores.

“Nossos sistemas de denúncia permitem que nossas pessoas relatem comportamentos inadequados de maneira confidencial e sem medo de retaliação, podendo optar por fazerem isso por voz, por e-mail ou página web. A denúncia é tratada por uma empresa externa e o relator sempre pode consultar o resultado da tratativa”, diz o diretor.

Na Aviva, existe uma linha direta onde qualquer pessoa pode acionar o canal. Após a denúncia, uma investigação interna é aberta para que as medidas cabíveis sejam adotadas. ”Acionamos nossa equipe jurídica em qualquer caso de discriminação e realizamos um trabalho de políticas de consequências, além de contar com letramento para ensinar ao colaborador como agir em cada situação”, diz Laini.

Chagas avalia que ainda existe uma dificuldade social enraizada no acolhimento de pessoas LGBTQIAPN+. “O cliente é preconceituoso. Ou me torno heteronormativo para agradar ou pago o preço. Às vezes o próprio investidor não vê essas contratações com bons olhos. Essas minorias são silenciadas também pela falta de postura das diretorias, o que reforça a necessidade de ocupar esses espaços”, finaliza.

(*) Crédito da capa: reprodução

(**) Crédito das fotos: Divulgação