Ainda que o cenário da hotelaria brasileira seja de terra arrasada, entre mortos e feridos, empreendimentos focados no mercado de luxo não apenas salvaram-se, mas conseguiram boas performances nos últimos meses. Com um público-alvo menos sensível à crise financeira, marcas de alto padrão se beneficiaram do fechamento de fronteiras e das restrições de viagens internacionais, conseguindo abocanhar uma fatia de turistas abastados até então avessa a conhecer destinos domésticos.

No caso do Brasil, existe o agravante do esvaziamento do público internacional, que, apesar da inexistência de barreiras sanitárias para ingresso no país e do real desvalorizado, não deve retornar tão cedo. Talvez, a imagem negativa angariada lá fora e a estratégia desarticulada de enfrentamento da pandemia, além de outras mazelas como violência urbana, crise política e econômica, expliquem essa ausência, mas é certo que o turismo internacional não deixa ninguém animado na indústria de viagens nacional.

Em março, a GlobalData divulgou dados de um novo levantamento destacando a deterioração da situação financeira dos consumidores em várias partes do mundo. De acordo com o estudo, 34% dos entrevistados alegaram estarem extremamente preocupados com a renda pessoal, enquanto outros 13% afirmaram não possuir grandes inquietações quanto ao saldo bancário. Ainda assim, segundo a empresa, existe um nicho de clientes que conseguiu contornar a crise, logrando, inclusive, poupar dinheiro durante a pandemia.

No Brasil, infelizmente, essa não é a realidade de muita gente, e o atual número de 14,3 milhões de desempregados, segundo o IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), ratificam essa impressão. Entretanto, como vivemos em uma nação com desigualdades enraizadas, rico é o que não falta por aqui. Por isso, marcas de luxo do país vêm atraindo milionários brasileiros que estão gastando mais, inclusive com hotelaria de alto padrão.

Reportagem da Folha de São Paulo mostra, por exemplo, que grifes de luxo elevaram suas receitas em função das restrições de viagens internacionais. Na LVMH, dona de marcas como Louis Vuitton e TAG Heuer, a queda em itens de vestuário e couro foi de 37% no segundo trimestre de 2020. O final do ano, por outro lado, registrou avanço de 18% ante o trimestre final de 2019. Desempenho parecido obteve a Kering, dona da Gucci, que viu suas vendas despencarem 30% no primeiro semestre, mas reduziu a queda para apenas 3% nos últimos seis meses do ano. O e-commerce da companhia, por sua vez, viu o faturamento aumentar 67% em 2020. Já a Bvlgari, também do grupo LVMH, diz que seus resultados estão 12% acima do registrado em 2020 para o mês de março no Brasil.

Em entrevista ao Hotelier News, Melissa Oliveira, consultora hoteleira e ex-diretora geral do Unique Hotel, explica que, a partir de setembro de 2020, o mercado de luxo observou uma explosão na demanda doméstica. “Até fevereiro, principalmente hotéis menores, tiveram meses intensos, pois brasileiros com dinheiro que não puderam sair do país fizeram esse turismo interno em busca de isolamento, em sua maioria utilizando o transporte terrestre. O Unique Garden, por exemplo, teve os melhores meses de sua história”, revela.

mercado de luxo -Sheila Mueller

                     Sheila aponta crescimento em reservas para o latino-americano

Mercado de luxo: alta performance

Coleção global de hotéis de luxo, a LHW (The Leading Hotels of The World) possui 400 empreendimentos parceiros no mundo, sendo oito deles brasileiros. Sheila Mueller, diretora de Marketing da empresa no país, revela que a demanda para unidades latino-americanas teve alta muito expressiva a partir do segundo semestre do ano passado. “Grande parte das reservas começaram em junho de 2020 para frente, quando os hotéis começaram a reabrir. Nos meses seguintes, como julho, agosto e setembro, observamos crescimento de demanda no Brasil para hotéis de praia e campo, em destinos mais espaçados e com maior contato com a natureza”, destaca. “Fizemos cálculos e identificamos alta de quatro vezes frente ao mesmo período em 2019, considerando reservas on the books”, complementa.

Segundo Melissa, grande parte dessa demanda foi direcionada para empreendimentos de menor porte. “Esses hotéis viveram uma explosão de reservas, muitos deles registrando seus melhores meses. São hóspedes regionais, principalmente de dentro dos próprios estados”.

Um exemplo clássico é o Six Senses Botanique, localizado na Serra da Mantiqueira (SP). Integrante do portfólio da bandeira de luxo do IHG (InterContinental Hotels Group) desde fevereiro, a unidade passou praticamente ilesa pela crise até aqui. Fechado por três meses em 2020 e reaberto em julho, o empreendimento chegou a bater 80% de ocupação no segundo semestre do ano passado. “Retomamos as operações com quatro quartos disponíveis de 18. À medida que os decretos foram assinados, algo que sempre respeitamos, aumentamos o inventário até abrirmos integralmente, antes do Six Senses entrar na operação”, pontua Renata Luque, diretora de Vendas e Marketing do empreendimento.

Segundo a executiva, a chegada da marca aguçou a curiosidade dos clientes, o que ajudou a elevar a performance do hotel. “A bandeira já era conhecida no Brasil, então o fato de sermos o único empreendimento das Américas, fez com que atraísse o interesse do público. Desde julho, quando reabrimos, também passamos a aceitar crianças em qualquer ocasião, não apenas em datas comemorativas”, pontua Renata. “Entretanto, com o aumento das restrições em março, sentimos um baque nas ocupações”.

Após permanecer 60 dias fechado, o B Hotel conquistou sua melhor ocupação desde a reabertura, em outubro de 2020. No período, foi registrado alta de 51,44% no indicador e 49,52% em RevPar. De acordo com Paulo Brazil, diretor Comercial do hotel, até a chegada da segunda onda os números se mantiveram estáveis. “De outubro pra cá, mantivemos os resultados, mesmo que ainda distantes do que eram antes da pandemia. Depois do dia 10 de março, houve grande impacto com a paralisação das atividades nas principais capitais”.

Brazil ainda ressalta que a unidade ganhou novas características, registrando maior ocupação aos finais de semana. “Durante a semana mantivemos algum corporativo e pequenas reuniões obedecendo o distanciamento e seguindo os protocolos. Mantivemos a nossa diária média, pois temos um público esclarecido”.

Com oito hotéis e 26 restaurantes, o Grupo Fasano sentiu a retração das demandas internacionais, mas conseguiu preencher as lacunas com o público interno. “O que ocorreu no período da pandemia é que, ao mesmo tempo que não tivemos o público internacional, tivemos uma demanda significativa do próprio público interno que se permitiu conhecer outras cidades no Brasil ou até mesmo vivenciar experiências na própria cidade”, comenta Rodrigo Napoli, diretor de Vendas da rede paulistana.

No tradicional Copacabana Palace, que antes tinha expressiva demanda estrangeira, viu o cenário mudar radicalmente. “Com a crise no setor de turismo em decorrência da pandemia mundial, não podemos dizer que houve um aumento da ocupação comparada a tempos normais, pois tínhamos bastante mercado internacional. No entanto, desde a restrição das viagens internacionais, temos percebido um grande aumento do publico nacional, que hoje corresponde a quase 90% da nossa ocupação”, comenta Ulisses Marreiros, gerente geral do empreendimento.

mercado de luxo - Renata Luque

                Renata: Botanique vem investindo em experiências adaptadas

A força das agências e experiências

Diante das infinitas possibilidades do mercado de luxo interno, empreendimentos reforçaram suas ações de marketing, focando em experiências e parcerias com os demais elos do trade turístico. Com a chegada do Six Senses, o Botanique estreitou relações com agências de viagens de alto padrão. “É algo que antes não era desenvolvido no hotel. As agências também reaprenderam a trabalhar. Antes, as que empresas vendiam destinos internacionais e pouco Brasil não podiam perder essa demanda e passaram a se capacitar para comercializar o mercado interno também”, salienta Renata.

E o resultado veio. Se antes o market share do Botanique para agências de viagens era de apenas 10%, hoje o indicador chega próximo aos 27%. E se mesmo antes da chegada da bandeira internacional de luxo ao empreendimento a estratégia de marketing já era satisfatória, a rede optou por não realizar grandes mudanças. “O Six Senses entrou de maneira muito respeitosa quanto à essência do Botanique. A Fernanda Semler, proprietária, ainda tem voz ativa. Seguimos a fórmula de sucesso e não mexemos em time que estava ganhando”, afirma a diretora.

A propriedade manteve sua forte ação em redes sociais, com foco em Instagram e Facebook. “Posicionamos nossos departamentos de vendas e marketing como parceiros dos agentes de viagens e continuamos com mídias sociais focadas em vendas diretas”, complementa Renata.

Napoli explica que o Fasano São Paulo criou programas para atrair o público local, como o Experimente São Paulo, que reúne serviços de hospedagem e gastronomia. “O mesmo aconteceu nas demais cidades onde estamos presentes, com a criação de programas específicos para enaltecer todas as experiências que oferecemos. O Brasil tem um grande potencial turístico e a pandemia tem fortalecido esse momento. Procuramos proporcionar experiências diversas, seja na cidade, no campo ou próximo ao mar, respeitando todos os protocolos de prevenção e segurança para zelar por nossa equipe e clientes”.

Em Brasília, o B Hotel vem realizando um trabalho de mala direta com clientes habitués, focando em demandas regionais. “Sentimos que o turismo ficou restrito a curtas distâncias e deslocamentos terrestres. Nosso público-alvo tem sido hóspedes de até 300 quilômetros. Estamos trabalhando com agências dessa região, criando pacotes que permitam late check-out. Temos uma vista espetacular e um serviço primoroso para proporcionar uma mudança de cenário”, destaca Brazil.

O diretor do empreendimento também ressaltou a relevância de parcerias com agentes neste momento como impulsionadores do redescobrimento de destinos de luxo no Brasil. “É um olhar que estava sempre para o exterior. Hoje, descobrimos que temos destinos extraordinários que muitos estrangeiros buscam e não tinham esse reconhecimento. Acredito que será uma tendência irreversível e nos obrigará a criar estruturas mais consolidadas”.

Em São Paulo, o Botanique se empenhou em criar novas experiências para os hóspedes, mirando seu potencial gastronômico, de bem-estar e sustentabilidade. “Tiramos proveito de trilhas internas da propriedade e de passeios de mountain bike. O hotel está fechado para passantes e reformulamos o room service com menus pensados em experiências como piquenique em jardins privativos e happy hour com cervejas artesanais e comida de boteco”, diz Renata.

Já no Rio de Janeiro, o Copacabana Palace segue recebendo hóspedes habitués e vem focando seus esforços em serviços de day use pensados no público local. “Continuamos recebendo clientes habituais que nos visitam de outros estados, mas posso dizer que temos visto mais cariocas também, principalmente para os pacotes de day use, Staycation e Dine&Stay”, acrescenta Marreiros.

Para atender às demandas que surgiram na pandemia, o Copa criou pacotes que atendem justamente a esses hóspedes, como o Staycation, que oferece 30 horas de hospedagem; o Stay a Little Longer, que possibilita que a viagem seja estendida em uma noite para reservas de três noites (com a quarta noite sem custo); e o Long Stay, para quem pode se permitir a uma estadia ainda mais longa. “Esse pacote inclui sete noites de hospedagem com tarifa diferenciada e serviços especiais para que o hóspede se sinta realmente em casa, como inclusão de passeios, descontos especiais na lavanderia do hotel, nos restaurantes e um jantar cortesia na última noite”, explica o gerente.

mercado de luxo - Paulo Brazil

                   Brazil ressalta a importância de parcerias com agências

Luxo pós-pandemia

Um dos grandes questionamentos sobre o setor de luxo pós-pandemia é: será possível reter esse público no mercado interno, mesmo após a abertura das fronteiras? Para Melissa Oliveira, haverá um meio termo com o retorno de turistas internacionais. “Foi um bom momento para o brasileiro conhecer o que temos internamente. Outro fator como a flexibilidade do trabalho remoto também permitiu às famílias viajarem e desfrutarem dos empreendimentos. O bleisure veio para ficar, mas o corporativo não será como antes. Hotéis podem se beneficiar trabalhando serviços, personalizações e CRM. Quando a pandemia acabar, boa parte do dinheiro poupado vai pra fora”.

Sheila ressalta que, com a chegada da pandemia, muitas pessoas passaram a investir mais em bens materiais do que experiências, mas o cenário deve mudar com a vacinação em massa e reabertura das fronteiras. “Não acredito que será um processo tão rápido, mas as previsões apontam que, em 2023, teremos números próximos ao da pré-pandemia. As recuperações virão do lazer e a Leading está aumentando seu portfólio, pois os hotéis estão percebendo a importância de ter uma marca por trás”.

Já a diretora do Botanique prevê maior procura por propriedades que valorizem o bem-estar, alimentação e viagens com propósito. “A experiência de uma refeição terá um significado maior, por exemplo. Teremos que criar conexões genuínas com o hóspede”.

(*) Crédito da capa: Ricardo Matsukawa/Terra

(**) Crédito das fotos: Divulgação