Nelson Rodrigues dizia que toda unanimidade é burra, mas existe no mercado de trabalho uma espécie de consenso: é preciso amar o que se faz. Seja manicure, engenheiro ou jogador de futebol, por exemplo, amor à profissão pode definir o sucesso dentro dela. A hotelaria, por consequência, não está nem um pouco fora desse contexto. É necessário ter paixão para cumprir escalas, dobrar turnos, apresentar-se aos finais de semana e, no final das contas, manter a lição número um sempre em mente: bom relacionamento com o hóspede. Agora, depois de tudo isso, integrar o mercado de trabalho parece algo complicado? Bem, depende do ponto de vista.

Ruan Santana tem 23 anos e trabalha com hotelaria no Rio de Janeiro. Carioca, o estudante está no último ano do curso de Hotelaria (bacharelado) da UFRRJ (Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro). Ele não fecha os olhos aos problemas do caminho profissional que escolheu, contudo, se declara e crava que nasceu para cuidar de pessoas. “Fiz o ensino médio com técnico em hospedagem no Instituto Federal e foi nessa época que comecei a entender sobre o segmento. Tive bons professores que despertaram esse interesse e, quando fiquei entre Enfermagem e Hotelaria, optei pela segunda área. Hoje em dia, sei que fiz a coisa certa e não quero fazer outra coisa. Na verdade, com 17 anos, já me via atuando no setor”, explica.

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Araújo: hotelaria brasileira tem grande potencial

Após chegar ao quarto ano da graduação, Santana afirma que muitos pensamentos mudaram ao longo do trajeto. As passagens pela parte operacional nos estágios, por exemplo, são vistas como essenciais atualmente. De acordo com o que o modelo suíço de ensino hoteleiro mostra, o estudante ressalta que o arcabouço profissional de servir mesas e limpá-las também ajudam a compor um bom futuro gerente geral no futuro. “Não gostava de trabalhar nesta parte, mas entendo que sem essa experiência não me sentiria pronto para gerenciar. Volto-me à gestão sem esquecer do que vivi no operacional hoteleiro”, complementa.

No Rio Grande do Sul, Marcelo Rodrigo de Araújo é estudante de Hotelaria no Instituto Mix, em Lajeado. Atuando no Hotel e Paradouro Parque das Tuias, na parte de A&B, o profissional percorreu um caminho diferente. Já com 15 anos de atuação como cozinheiro em hotéis e restaurantes de Porto Alegre e região, Araújo sentiu necessidade por especialização. Há três anos no Parque das Tuias, ele estuda há dois meses e pretende crescer ainda mais como profissional no mercado hoteleiro.

“A hotelaria entrou na veia e me apaixonei. Receber pessoas é um trabalho desafiador e incrível pela sua mutação constante, cada vez mais desafiador e procuro melhorar diariamente. No caso da gastronomia, área na qual quero me especializar, é um trabalho técnico e, ao mesmo tempo, intuitivo. Na cozinha ou em vertentes do segmento, agrego minha experiência ao conhecimento do curso. Aos poucos, compreendo que hospitalidade está em tudo que fazemos, desde a boa recepção dos clientes até a decoração mais detalhista de um prato. É por isso que não há espaço para quem faz o básico. Nós, funcionários e estudantes, somos peças fundamentais à hotelaria e tudo começa com essa forma de pensar”, pontua.

Crise e pandemia

Todos se fazem a pergunta de como seria o mercado de trabalho se a pandemia não tivesse aparecido ao final de 2019 no mundo e, em março de 2020, no Brasil. A crise, relacionada quase por inteira ao momento que ainda vivemos por aqui, prejudicou uma série de empreendimentos hoteleiros. O fechamento de hotéis, temporário e definitivo, assustou players e colaboradores, ambos tementes pelo fim de sua fonte de renda. Agora, estudantes do segmento sabem o que está acontecendo? Há entendimento das dificuldades?

De acordo com Santana, é difícil não relacionar a situação à pandemia por completo, mas existem pontos que datam de antes dela.

“A pandemia deixou o setor em frangalhos, mas a falta de apoio no plano de carreira sempre existiu em alguns casos. O entendimento do estudante do setor como somente mão-de-obra barata é recorrente e falta incentivo para que ele se torne, de fato, um gestor. Existem empresas que valorizam o estagiário ou trainee, claro, mas é preciso enxergar o outro lado. Com a Covid-19, a sobrecarga de trabalho também foi uma constante. Na minha visão, são menos empregos e estágios, atrapalhando até mesmo na formação de alguns profissionais. “.

Pela ótica de Araújo, a questão é pouco falada nos cursos, mas todos entendem a situação. “Talvez por não desejarem assustar os alunos, professores não citam tanto esses problemas, apesar de não esconderem que hotéis fecharam durante a pandemia. No meu entendimento, a crise está em todos os setores, não só na hotelaria. Por isso, o importante agora é se adaptar às mudanças e reformulações do mercado para buscar vitalidade. Não sairia da área e ainda mantenho esperanças por dias melhores”, diz.

Perspectivas

O capítulo de estudantes se encerra, claro, com o que ambos enxergam à espreita no horizonte hoteleiro. Santana aponta em uma volta lenta e gradual, mas frisa que sua geração, forjada em trabalha árduo e dificuldades pandêmicas, será responsável por assumir postos de liderança no futuro e mudar vícios do modelo convencional. “Se pensarmos realisticamente, penso no processo de retomada por dois anos. Depois disso, será uma era de alterações e revoluções para enquadrar a hotelaria em galerias melhores da economia”, encerra o estudante.

Para Araújo, existe o entendimento de que a hotelaria e experiência se cruzam no caminho aos resultados positivos. É nessa linha, aliada à gastronomia, que ele espera seguir em sua carreira. “O Brasil tem potencial para ser um dos maiores polos hoteleiros. Essa melhora nos números passará, principalmente, pela capacitação de pessoas conforme a readequação do trabalho”, finaliza.

Mercado de trabalho: dicas

Nada do que foi dito com relação à entrada no mercado de trabalho é válido sem boas práticas no começo de tudo: currículo e entrevista de emprego. Segundo Lucila Quintino, CEO da Hotel Consult, ambos fatores devem ser o norte dos estudantes e recém-formados em hotelaria que desejam começar a atuar na área. Na primeira etapa, portanto, a criação do currículo é simples, porém essencial para inserção no mercado de trabalho.

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Lucila foi trainee na Accor e experiência fez toda a diferença

“É a primeira imagem profissional que ficará para o recrutador. Algumas pessoas se preocupam menos com isso e não querem demandar concentração e tempo para montar o currículo, mas isso é um erro. Portanto, pense o documento de forma objetiva e clara. Sem muito floreiro. Além disso, passe informações que o recrutador quer saber, como onde trabalhou, por quanto tempo e em qual cargo. Parece óbvio, mas muitos esquecem disso e, por isso, podem ter dificuldade em seleções”, explica.

Depois disso, a fase de entrevistas é a próxima a ser desmistificada por Lucila. Ela reforça que não é tão simples assim, demandando preparação e foco dos candidatos. “O começo está no autoconhecimento profissional. Conhecer e pesquisar sobre a empresa que está tentando entrar é ótimo, mas olhar para si e compreender os desafios internos é o primeiro passo”, afirma. “Dessa forma, faz a diferença elencar o que você já fez na carreira, evitando que o nervosismo leve ao esquecimento no momento de perguntas. Atrelado a isso, também simule a entrevista, escrevendo o que falaria ao entrevistador”, completa. O roteiro criado faz parte do processo de minimizar medos e inseguranças.

Fora isso, treinar ações comportamentais também faz a diferença e o Google pode ajudar com isso. Nessa parte, Lucila resume assim: “Via de regra, você é contratado pela sua experiência e demitido pelo comportamento”. Sobre entrada no LinkedIn e visita aos eventos do trade, a especialista afirma que ambos são válidos. O primeiro para demonstrar interesse e proatividade para empresas da área, e o segundo como forma de estabelecer networking, entender os players e abrir a mente sobre o mercado.

Ex-trainee na Accor, a executiva afirma que leva a vivência deste período ao longo de sua carreira, principalmente em processos de mentoria e preparação dos profissionais para gestão. “É uma grande rede que me capacitou em muitos sentidos. Fui guiada da melhor forma”, conta.

Programas

Para trazer a realidade dos processos de trainee de empresas conhecidas do mercado, a reportagem do Hotelier News entrevistou Flávia Buiati, vice-presidente de Pessoas, Financeiro e Jurídico da Atlantica Hotels; e Paulo Mélega, diretor da Atrio Hotel Management.

Integrantes de duas das cadeias hoteleiras mais importantes no país, ambos explicaram um pouco sobre o processo para admitir esses profissionais no mercado de trabalho. A Accor foi procurada para falar sobre o programa de estágios, mas afirmou que ele passa por uma reestruturação e, por isso, não participou da apuração.

  • Atlantica Hotels
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Flávia: O programa de trainee é extremamente relevante em nossa estratégia

“Neste primeiro ciclo vigente, tivemos 60 inscrições de colaboradores em nível de liderança e foram 14 aprovados para ingressarem. A periodicidade é anual”, explicou a executiva. De acordo com ela, a estruturação do programa foi feita para que o trainee finalize o ciclo apto para liderar. Isso porque a empresa já entende que ele desenvolveu as competências necessárias.

A partir do sexto mês no programa, então, o trainee pode escolher por entrar em processos seletivos para se tornar gerente geral. Se aprovado, continua a ter os benefícios de desenvolvimento da iniciativa e é acompanhado pelo mentor. Durante esse período, ele vivencia rotinas operacionais, administrativas e estratégicas em governança, manutenção, controladoria, RH, recepção e gerência operacional.

Por conta da pandemia, Flávia explica que o começo do projeto de 2020 foi adiado e adaptado para a próxima edição, em 2021. “Esse aspecto teve impacto da pandemia, mas, com os ajustes importantes que foram feitos, ficamos muito felizes como o programa está acontecendo e temos feedbacks muito positivos de todos os participantes”, conclui.

Ao final, espera-se que todos os aprovados ocupem cargos de liderança nos hotéis que já atuam como trainee.

  • Atrio
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“Nosso foco está em excelência, resultados, autonomia e simplicidade”, diz Mélega

Antes de estrear seu próprio programa de trainee, em 2015, a Atrio utilizava os processos da Accor. Isso, segundo Mélega, desenvolveu na companhia a vontade de ter um funcionário com os atributos que remetessem à empresa. Por isso, até 2019, foram formadas cinco turmas de, em média, 10 trainees com o chamado “DNA Atrio”. “Três dos nossos selecionados já viraram gerentes gerais. Isso mostra a força da nossa seleção e esperamos que isso aconteça com o restante. Mais de 500 pessoas já se aplicaram ao processo e selecionamos 55 profissionais”, explica.

A seleção é rígida e faz parte do filtro da Atrio para ter os profissionais de perfil mais compatível possível. São exigidos: dois anos de experiência no setor, inglês intermediário e disponibilidade geográfica. O processo inclui apresentação de currículo, entrevista individual e dinâmicas presenciais.

Por conta da pandemia, o processo será retomado no segundo semestre de 2021, mas com os mesmos critérios. “Nós contratamos mais pela atitude do que técnica. O objetivo é ter profissionais com vontade de trabalhar e se desenvolver conosco, integrando a Atrio à sua vida. A preparação gerencial dada por nós é feita por padrinhos, justamente para ajudar no acompanhamento do trainee”, encerra o diretor.

(*) Crédito da capa: Sora Shimazaki/Pexels

(**) Crédito da foto: Reprodução/Google Meet

(***) Crédito da foto: Divulgação/Hotel Consult

(****) Crédito da foto: Divulgação/Atlantica Hotels

(*****) Crédito da foto: Divulgação/Atrio Management