A escolha da carreira profissional passa por uma série de filtros, pessoais e familiares. Temos situações, por exemplo, nas quais a influência de gerações anteriores pode ser determinante para escolher que caminho a trilhar. Uma das áreas que seguem essa cartilha, como veremos ao longo da reportagem, é a hotelaria. No entanto, já há alguns anos, nota-se certa dificuldade na base de formação do setor, seja por desatualização da grade curricular, evasão de alunos ou falta de interesse dos jovens vestibulandos. Com essas dificuldades no radar, então, como melhorar a situação? Não existe fórmula mágica, mas duas instituições suíças mostram que o mercado hoteleiro pode se adaptar às novidades e percalços, sem deixar sua essência de lado.

O tema adaptação, aliás, veio à tona por muitas vezes durante as entrevistas com a Dr. Christine Demen Meier, diretora da Les Roches, e Inés Blal, reitora e diretora da EHL Group (École hôtelière de Lausanne), respectivamente. Os encontros virtuais aconteceram em dias diferentes, mas é possível encontrar similaridades no modus operandi das instituições, referências globais na formação de hoteleiros. Ambas conseguem representar atualização, inovação e, ao mesmo tempo, tradicionalismo. O fato de trabalharem, por exemplo, com estímulo à digitalização em projetos de tecnologia fala por si.

“A tecnologia encurta caminhos e não devemos vê-la como inimiga da hotelaria, muito menos no ensino. O advento representa simplificação e melhora de processos, otimizando a vida de hoteleiros e hóspedes. Na grade de Les Roches, por exemplo, já trabalhamos temas relacionados à digitalização, com professores que discutem sobre robôs, IA (Inteligência Artificial) e blockchain nas aulas”. Além disso, Christine acrescenta que o estímulo ao uso da tecnologia é dado por meio de projeto que consiste na criação de uma startup. Para ela, é uma forma de compreender, na prática, que a integração da tecnologia aos afazeres hoteleiros já é realidade e não elimina o trabalhador da equação.

Na mesma direção, Inés, que comanda três campus da EHL Group, também crê na fortalecimento que a digitalização traz à hotelaria. Com duas unidades na Suíça (Lago Genebra e Alpes Suíços) e uma em Singapura, a executiva explica que o formato da aula já é disruptivo, bem como outros projetos que são feitos online. “Realizamos workshops que falam sobre tecnologia e digitalização no nosso setor. O ensinamento é melhor assim e, até por isso, nosso MBA é 80% online. Portanto, pensar em plataformas, técnicas e ferramentas que a inovação tecnológica pode proporcionar só motiva mais a EHL”, afirma.

Foco

Hotelaria - Les Roches

Christine: campo de atuação para formandos é amplo

Diferente da maioria dos cursos e instituições nacionais, a hotelaria fora do país se volta mais ao lado gerencial e administrativo, em contraponto à ‘pegada’ brasileiro no operacional. Não é algo bom ou ruim, friamente analisando, se contarmos que o Brasil tem excelentes profissionais nos cargos executivos. A constatação exemplifica, porém, o possível lastro deixado no ensino hoteleiro do país. Os estudantes de hotelaria aprendem a servir mesas, manter ambientes limpos e gerir equipes, mas podem pecar quando o assunto é administração financeira, por exemplo. No caso de Les Roches, a aposta está na passagem do aluno por todas as áreas, da recepção às finanças.

“Nosso maior estímulo está no setor administrativo, mas conhecer as especificidades do operacional é essencial para construção de um bom hoteleiro. É o modelo suíço de trabalho que passa de geração à geração”, complementa a diretora.

Inés cita que a gerência prática de hospitalidade é o principal atributo das instituições da EHL Group. A compreensão de que este deve ser um atributo independente à hotelaria está enraizada no modelo de ensino de Lausanne. Na visão da reitora, existe uma nova definição de hospitalidade atualmente, integrada ao mundo business como qualquer companhia competitiva. Mesmo assim, estar alinhado com o operacional ensina processos e traz atenção aos detalhes, contribuindo no desenvolvimento ambiental do aluno além da hotelaria.

“Nossos formandos não se voltam, exclusivamente, ao mundo hoteleiro. Essa é uma forma antiga de ver os cursos do segmento. Hoje, tudo que envolver ou tiver o pensamento de produto voltado ao consumidor pode ter um profissional formado por nós. Nossa Innovation Village é um caso em que a ideia de hospitalidade é aplicada como meio, ou seja, algo implícito ao negócio, seja qual for a área que atende”, explica.

Números

Em Les Roches, as nacionalidades são divididas, principalmente, entre asiáticos e europeus — 50% cada. Com 100 nacionalidades representadas na escola, a diretora Christine não lembra de muitos brasileiros, mas vê o país como “mercado com potencial”. Até por isso, uma das ideias da executiva é expandir o conceito multicultural da escola e garantir que alunos — e professores — venham de todo o lugar. Segundo ela, a evasão de alunos durante o curso, que é de três anos, é praticamente nula. Para isso, ela leva em consideração a ampla carga curricular vista nas aulas, permitindo um campo de atuação vasto.

EHL - Hotelaria

“Pensar hospitalidade vai além da hotelaria”, diz Inés

Já a EHL tem números mais específicos. Com processo restrito de admissão, a desistência semestral de alunos varia entre 0,5% e 1,5%, de acordo com Inés. Ao todo, 600 pessoas se formaram por ano no último quadriênio — o curso é semestral e tem duração de quatro anos. Com 121 nacionalidades computadas (suíços, franceses e italianos são maioria) no sistema das unidades, a média dos estudantes é de 22 anos e 58% são mulheres. Em 2020, de 698 profissionais formados — dois semestres — entre 25 e 30 eram brasileiros. A pergunta sobre desinteresse no mercado também pode surgir, mas Lausanne não lida muito com isso. O número de inscrições feitas até outubro de 2019 (3397) cresceu 10% ante o mesmo mês em 2020 (3726), já em período pandêmico.

Pandemia

Falar do impacto da Covid-19 foi inevitável durante as entrevistas. Além da adaptação inerente a todos os campos de negócios, Christine e Inés falaram da continuação da procura pelos cursos, além da antecipação de tendências. É fato, para a primeira, que o lado de gerência sofreu menos que o operacional, mas houve rodízio nas disciplinas, evitando déficit de uma parte da turma em detrimento da outra. “Criamos um sistema híbrido que mantinha a interação das disciplinas, além de promover atividades virtuais”, ressalta.

Na EHL, a sobrevivência na pandemia foi feita em grupo e, com isso, foi mais fácil implementar a digitalização. O entendimento das classes sobre a necessidade de flexibilidade, na visão da reitora, foi imprescindível para que o ensino aguentasse o isolamento social e outras restrições. “Nossas aulas presenciais voltaram em setembro, com autorização da jurisdição local, e conseguimos superar esse momento. Imagino que, aos que entraram no mercado nessa época, outras práticas foram adicionadas à hotelaria e a ideia de profissionalização ganhou ainda mais importância”, finaliza Inés.

Hotelaria: experiência de perto

Lembra do que foi dito no início da reportagem? A hotelaria é um dos ramos nos quais a influência familiar é muito forte. Essa é uma tendência confirmada com três relatos colhidos de Rodrigo Tsutsumi, Pedro Freire e outro profissional que não quis se identificar — vamos chamá-lo de Alexandre. Em todos citados, a tônica está no desejo de seguir os passos do pai e avô. Essa questão é explicitamente presente e coordena o início dos estudos de cada um.

O primeiro, Tsutsumi, é consultor hoteleiro, nascido no Rio de Janeiro e, atualmente, mora em Atlanta – está nos Estados Unidos há 32 anos. Na entrevista feita por video chamada, ele contou que é a sétima geração da família a trabalhar no setor. Seu avô, por exemplo, graduou-se em 1933 no curso de hotelaria de Cornell, nos Estados Unidos. Ele estudou na mesma universidade na década de 1990, já com maior ênfase em finanças, consultoria, desenvolvimento e economia, com menos operacional.

“Imagino que continue assim, mas, na minha época, Cornell tinha um foco maior em negócios. As disciplinas de hospitalidade e hotelaria eram 80% negócios e 20% operacional. Na minha visão, se quiser algo mais voltado ao segundo tópico, procure outra instituição. Não é demérito, claro, mas simplesmente o curso tem outro foco por lá. Tenha isso em mente”, salienta. Cornell é um dos cinco programas mais fortes nos EUA e, bem como outras graduações, também fornece um leque grande de áreas de atuação profissional. “Mesmo com o lado corporativo prevalecendo, é um curso que me preparou para entender o lado do cliente em qualquer situação. A base curricular, que se atualizou ao longo dos anos com o desenvolvimento tecnológico, nunca deixou de abordar o lado humano da profissão. A raiz da hotelaria sempre será o operacional”, completa Tsutsumi.

Hotelaria - Pedro Freire (JLL)

Para Freire, estudar fora foi desafiante em várias formas

O segundo relato é de Pedro Freire, paulistano que trabalha na JLL e cursou Les Roches entre 2002 e 2004. Como dito, ele também teve toques da família, especificamente do avô, para estudar hotelaria. “Ele sempre dizia que era uma área com grande potencial no Brasil”, disse no começo da nossa conversa. O executivo, que faz carreira no segmento, estudou um ano de hotelaria no Senac e depois partiu para o desafio na Suíça. Logo no início, ele percebeu que a parte operacional era o forte do ensino por lá.

“Dormia e respirava hotelaria lá. É, de fato, uma mescla imersiva de prática hoteleira com administração desde o início. Até por isso, já naquela época eles disponibilizavam notebook e mostravam ferramentas tecnológicas de marketing, distribuição e RM (Revenue Management). A ideia de debater e antecipar tendências sempre esteve muito presente, pois além de formar profissionais, eles queriam que estivéssemos atentos às evoluções”, ressalta. Diferente dos outros dois personagens encontrados, Freire experimentou um pouco do ensino por aqui. Dadas as proporções, a comparação de aulas, por exemplo, está na didática.

“Eram aulas que iam além da exposição de questões e teorias do setor, como tive aqui no Brasil no único ano que cursei. Não estou dizendo que é ruim, mas a diferença é clara. Na Suíça, aprendi a questionar sobre os processos da indústria e fui instigado a pensar novas maneiras de hotelaria. A participação mais ativa na aula, sendo até mais provocativa, pesou no meu desenvolvimento pessoal e profissional. Ainda hoje em dia, ter no currículo que estudou em escolas com esse nome é um diferencial. No entanto, por mais que o teórico seja avançado por lá, o estímulo à vivência é o que mais conta e abre a primeira porta. A partir disso, escolhas e atitudes determinam sua carreira”, finaliza o executivo da JLL.

Não menos importante, Alexandre é o último a contar da experiência vivida fora do país. Produto da EHL, ele cursou entre 2011 e 2015 — o mais recente entre os ex-alunos entrevistados. Sem atuar na hotelaria atualmente, o roteiro de interesse na área se repete: pai e avô são do setor. Para ele, então, chegar à instituição suíça foi um movimento natural, atrelado à ideia de estudar fora do Brasil. “Pesquisei sobre instituições de ensino ligadas ao turismo e assim encontrei a EHL. Apesar de não trabalhar na área hoje, sou grato pela oportunidade e levo muitas coisas dessa formação para o que faço atualmente. A ideia de um profissional que, antes de gerenciar terceiros, se auto gerencie bem, é algo que levo na minha carreira. O profissional formado lá sai para o mercado de trabalho com ética e confiança fortalecidos. Isso, para mim, é o principal quando falamos da EHL”, diz.

Com mais detalhes, ele explicou a grade de estudos que tinha. Nos dois primeiros anos, um estágio em hotelaria. Na transição do segundo ao terceiro, aulas e prática voltadas à administração, finanças, economia e turismo em geral. Por fim, o quarto ano implica na especialização em uma de três áreas: marketing, finanças ou empreendedorismo (a qual optou por seguir). Todas com foco na hotelaria, mas com margem para o mercado de negócios em geral. “O afunilamento foi importante e, até por essa veia empreendedora que escolhi, hoje estou fora da hotelaria. Mesmo assim a tradição e a estrutura da escola me fascinam, além da parte prática difundida em todos os aspectos do campus, com alunos servindo outros alunos. Contudo, quero chamar atenção para a falta de diversidade socioeconômica do curso. Penso que a inclusão com bolsas e programas ainda é algo a se melhorar — na minha época, pelo menos. Imagino que hoje as coisas tenham evoluído, mas quero frisar essa percepção”, completa.

Falta muito

O que é possível sentir ao final da reportagem? Insegurança, senso de atraso ou ímpeto de mudança? A hotelaria brasileira, com todos os problemas que tem e enfrenta, ainda é vista com bons olhos por instituições reconhecidas do segmento em todo o mundo. O “jeitinho brasileiro”, se usado da forma certa, pode ter a conotação mudada e representar a cordialidade do brasileiro citada por Sérgio Buarque de Holanda. O caminho para solução de algumas questões, por sua vez, está em se espelhar no reflexo suíço de ensino hoteleiro. Perfeccionista como um relógio e agradável tal qual os chocolates produzidos por lá.

(*) Crédito da capa: Divulgação/Les Roches

(**) Crédito da foto: Divulgação/Les Roches

(***) Crédito da foto: Divulgação/EHL

(****) Crédito da foto: Divulgação/JLL