Quando um caminhão de insumos chega à porta de um hotel ou quando um hóspede deixa a luz do quarto ligada, somos todos impactados. Em um setor que opera 24 horas por dia, sete dias por semana e 365 dias por ano, encontrar o ponto de equilíbrio quando se trata de sustentabilidade é, no mínimo, desafiador. Vivemos uma revolução verde em busca de mitigar prejuízos de séculos de negligência com o meio ambiente, mas o caminho é longo e repleto de complexidades até alcançarmos a neutralização de emissões de GEEs (gases de efeito estufa) na atmosfera. A boa notícia é que muitas empresas, entre elas empreendimentos hoteleiros, já iniciaram movimentos significativos que contribuem para a transição rumo à economia carbono zero. Mas qual a trilha para chegar lá?

Antes de nos aprofundarmos nas vias possíveis para a neutralização de um setor pulverizado, repleto de ramificações e inúmeros fornecedores, é preciso entender qual o ponto que o Brasil se encontra. Apesar do imenso potencial do país para a geração de energias renováveis, estamos muito aquém de nações que não possuem a mesma musculatura ambiental que a nossa. Contudo, as iniciativas pública e privada estão em uma verdadeira corrida para reverter esse cenário.

Em abril deste ano, o presidente Jair Bolsonaro anunciou durante a Cúpula do Clima nos EUA a nova meta de neutralização de CO2 do país. O chefe do Executivo alegou que o Brasil se compromete a alcançar a descarbonização até 2050. Como chegaremos lá? Bem, um tema que vem ganhando cada vez mais espaço na agenda ESG nacional são as compensações por crédito de carbono, que explicaremos melhor a seguir.

Crédito de carbono: a moeda da compensação

O termo pode soar um tanto estranho para quem não acompanha as negociações e movimentações que permeiam as inovações em ESG. Entretanto, o crédito de carbono já é um velho conhecido do mercado como um todo. Trata-se de um certificado digital que comprova que uma empresa ou um projeto ambiental evitou as emissões de GEEs.

Cada crédito de carbono equivale a uma tonelada de gás carbônico que deixa de ser emitida na atmosfera. É um ativo imaterial e com alto valor de compra. O conceito nasceu em 1997, a partir do Protocolo de Kyoto, acordo mundial firmado para conter as emissões de gases de efeito estufa.

“A preocupação crescente da sociedade em relação às mudanças climáticas tem influenciado diretamente não apenas os rumos de empresas dos mais variados setores em todo o mundo, mas também o comportamento das pessoas em relação ao consumo consciente – seja de produtos ou serviços seja de recursos naturais. Hoje, não basta produzir e vender por preços justos, é preciso que as empresas exerçam o menor impacto possível sobre o meio ambiente ou, pelo menos, que seus efeitos sejam compensados”, explica Fernanda Castilho, COO (Chief Operating Officer) da Moss Earth — startup que atua no mercado de crédito de carbono.

Fernanda Castilho - carbono zero

Hotelaria não pode ficar de fora do movimento, diz Fernanda

Segundo um estudo realizado pela Schroders, gestora global de investimentos, o Brasil tem potencial para certificar 1,5 bilhão de toneladas de crédito de carbono por ano — cerca de 300 vezes mais do que o patamar atual — uma vez que 39% da reserva de carbono do mundo está na Floresta Amazônica.

Globalmente falando, o setor de serviços ambientais já movimenta mais de US$ 1 trilhão de dólares ao ano. Em 2021, o mercado de compensações de carbono ficou na casa dos US$ 400 bilhões.

Vale lembrar que existem dois mercados para a comercialização do ativo. Um é o regulado, onde os governos ou jurisdições determinam uma meta para setores específicos, estabelecendo limites de emissão de CO2 para cada empresa. Caso esse teto seja estourado, as companhias precisam comprar créditos de compensação de excedentes.

A segunda opção é o mercado voluntário, caso do Brasil, que envolve empresas que não são obrigadas a compensar suas emissões, mas que vem ganhando cada vez mais relevância, superando a marca de US$ 1 bilhão em transações em 2021. A hotelaria, por exemplo, não faz parte do grupo de prioridades de compensação.

Movimentações do mercado brasileiro

Na esfera pública, o BNDES (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social) anunciou em maio deste ano sua primeira compra de crédito de carbono, que faz parte de um programa que pode destinar até R$ 300 milhões nos próximos dois anos para desenvolver o mercado de compensações voluntárias de emissões.

Nesta chamada inaugural, foram adquiridos R$ 8,7 milhões em créditos de cinco companhias desenvolvedoras. Os créditos foram comprados a termo, ou seja, as atividades de remoção ou redução de CO2 geradoras dos ativos ainda serão realizadas. Os maiores volumes do ativo da primeira compra envolvem projetos de conservação de florestas.

Em maio deste ano foi publicado o Decreto 11.075, indicando o início de uma regulamentação do mercado de carbono no Brasil. “Entendemos que esta regulamentação do mercado é de extrema importância e necessária, de forma a criar uma obrigatoriedade para que as empresas reduzam suas emissões”, acrescenta Fernanda.

Outro movimento importante foi o anúncio da criação de uma bolsa de valores de compra e venda de ativos verdes do Rio de Janeiro. Além da comercialização de crédito de carbono, outros ativos sustentáveis como energias, clima e florestas também estarão inclusos. A iniciativa como a capital fluminense no protagonismo da economia no país.

Rogério Iório

Hóspedes precisam estar engajados, aponta Iório

Maturidade de neutralização da hotelaria

O WTTC (World Travel & Tourism Council) lançou, em abril deste ano, diretrizes de sustentabilidade para o setor hoteleiro. No ano passado, a entidade uniu forças com o Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente para publicar o relatório Net Zero Roadmap, que estabelece uma estrutura para o segmento alcançar a neutralização de carbono até 2050. Os fundamentos destacam 12 ações que ajudarão a elevar o nível básico de sustentabilidade dos empreendimentos, fornecendo a cada hotel um ponto de partida em sua jornada.

Para a COO da Moss, as novas gerações vêm moldando a forma como as empresas olham para o compromisso ambiental como um todo, inclusive na hotelaria. “Esse novo comportamento afeta todos os setores da economia, tal como o setor hoteleiro. Como protagonista da cadeia do turismo, este já avançou muito nas últimas décadas na adoção de práticas sustentáveis como na gestão de resíduos e recursos energéticos. Portanto, creio no potencial, na maturidade e no engajamento desse setor que não pode ficar de fora de um movimento sólido e irreversível de boas práticas ESG”.

Rogério Iório, presidente do IBDN (Instituto Brasileiro de Defesa da Natureza), vê as movimentações do setor hoteleiro com bons olhos, uma vez que muitos empreendimentos estão buscando novas opções e recursos para mitigar seus impactos e, ao mesmo tempo, reduzir despesas operacionais. Entretanto, quando se trata de neutralização de emissões, há muito chão pela frente.

“Sustentabilidade é economia. Deixa de ser apenas uma questão ambiental. No caso da neutralização de carbono, a hotelaria está muito longe. É uma jornada complexa, pois não depende apenas da gestão, mas também do cliente, que é o grande emissor do setor. Reduzir a emissão é mais fácil do que neutralizar, logo, é importante que os hotéis entendam qual a pegada de carbono dos clientes”, acrescenta Iório.

O pioneirismo da Atrio

No Brasil, já é possível encontrar alguns cases de hotéis que estão, de fato, em busca da descarbonização. Em junho deste ano, dois empreendimentos administrados pela Atrio Hotel Management conquistaram os certificados de Hotéis Neutros de Carbono – selo emitido pela IBDN.

O Novotel Santos Gonzaga e o ibis Santos Valongo, ambos localizados em Santos, no litoral paulista, trilharam um longo caminho para conseguir a chancela. A iniciativa veio do desejo dos investidores em reverter o quadro das propriedades. Para compensar suas emissões, os empreendimentos plantarão cerca de 700 árvores nativas na Mata Atlântica até 2022.

“Acreditamos que o sucesso da sustentabilidade é um conjunto de ações, desde a reutilização de toalhas, uso de amenities sustentáveis, políticas plástico zero, produtos de limpeza certificados, reciclagem, coleta seletiva, etc. A energia elétrica dos dois hotéis vem do mercado livre de fontes renováveis, o que também ajuda na redução. Quando o projeto foi apresentado, abraçamos de cara, pois estava alinhado com ações que já estávamos fazendo”, comenta Rui Medeiros, diretor Regional de Operações da Atrio.

A IBDN realizou a medição operacional das propriedades e, em seguida, veio o trabalho de engajamento com os colaboradores. “Era importante que eles entendessem o que estava acontecendo e o que eles poderiam fazer dentro da unidade. O IBDN nos mostrou o que era possível fazer em termos de check-in, elevadores e dentro dos próprios apartamentos, pois não existia um plano de neutralização até então”, continua Medeiros.

Rui Medeiros

Sustentabilidade é conjunto de ações, afirma Medeiros

Iório explica que o GHG Protocol, que calcula as estimativas de GEEs, divide as emissões em três escopos:

Escopo 1: são emissões liberadas na atmosfera como resultado direto das atividades da própria empresa. Todos os combustíveis que produzem gases de efeito estufa são incluídos aqui, como combustão de veículos controlados pela companhia, por exemplo.

Escopo 2: emissões indiretas, provenientes de energia elétrica adquirida para o uso da empresa. Todas as emissões oriundas do consumo de energia elétrica, como vapor, calor e refrigeração entram nesse escopo.

Escopo 3: são todas as emissões indiretas não inclusas no escopo 2 que acontecem na cadeia produtiva da empresa. Por exemplo: matéria-prima utilizada, deslocamento de colaboradores, descarte de resíduos, transporte de insumos, viagens de negócios, etc.

De acordo com o presidente do IBDN, o maior desafio da hotelaria é a conscientização do hóspede. “Tudo é uma questão de educação do cliente. No caso dos hotéis, é um assunto delicado, pois existe o medo de reprimir e cercear o hóspede. Mas isso está mudando. Empreendimentos que recebem estrangeiros estão percebendo que não há motivo de vergonha para conversar com o usuário”.

Em relação às emissões, o escopo 3 é o de maior dificuldade, uma vez que não estão ao alcance do hotel em si. Entretanto, os empreendimentos podem adotar algumas iniciativas pontuais para mitigar esse impacto. “É uma conquista de grão em grão. Os hotéis podem escolher seus parceiros e fornecedores, priorizando empresas que trabalhem com políticas de redução de emissões ou compensações. Caso a companhia não tenha iniciativas dessa natureza, os empreendimentos podem compensar apenas os seus trajetos”, pontua Iório.

Em um primeiro momento, a Atrio vem focando seus esforços na neutralização de emissões, para em seguida mirar sua atenção na conscientização dos hóspedes e colaboradores. “É um processo de fases. E cada fase é um amadurecimento do projeto. Começamos medindo o impacto, entendendo os mecanismos de compensação e sensibilização interna”, reforça Medeiros.

Nesta fase do projeto, foram investidos cerca de R$ 20 mil em cada unidade da Atrio, mas o valor pode mudar dependendo da medição de emissões de cada empreendimento. “Já estávamos em uma fase mais madura, com algumas ações implementadas, como a compra de energia renovável. Também optamos pela compensação por plantio para envolver os colaboradores e investidores no processo”, revela o diretor.

Medeiros acredita que a neutralização de emissões do setor será um caminho natural, uma vez que quem não o fizer acabará ficando de fora do mercado. “Vejo claramente empresas do setor de turismo se movimentando, ainda que lentamente. Existe a preferência por marcas que adotam ações e políticas sustentáveis. No corporativo, principalmente, vemos companhias que escolhem o hotel dessa forma. E, cada vez mais, os clientes nos cobrarão isso”.

(*) Crédito da capa: Divulgação/Atrio Hotel Management

(**) Crédito das fotos: Divulgação