Desde que a hotelaria desabrochou como setor, muito se fala da famosa “veia hoteleira”. Leia-se profissionais que dão o suor na operação, com o bem-servir como missão primordial. Para os mais seniores, esse brilho no olho se perdeu com o tempo. Para os mais jovens, o amor pelo setor seria muito maior com algumas mudanças e reavaliações de jornadas de trabalho. De ambos os lados, o consenso é um só: a indústria pode e deve ser muito melhor para seus colaboradores.

Agora, como fazer isso? Como melhorar a experiência do colaborador para, em consequência, fazer o mesmo com a do hóspede? Nesta data tão importante em que celebramos o Dia do Hoteleiro, resolvemos nos debruçar sobre esse tema tão latente em nossa indústria, dando voz a eles que estão lá, 365 dias por ano, cara a cara com o consumidor final. Além disso, ouvimos também vozes pensantes do setor nessa seara para chegar a um conjunto de reflexões sobre o assunto.

Presidente da ABG (Associação Brasileira de Governantas e Profissionais da Hotelaria), Maria José Dantas acredita que as principais queixas da área dizem respeito à sobrecarga e escala de trabalho, que também comprometem a qualidade de vida dos colaboradores envolvidos na operação. “Trata-se de uma rotina pesada, com uma intensa jornada 6 x 1. Ter apenas um dia de descanso junto à família é muito pouco”, analisa.

Segundo Maria José, as demandas levadas à entidade são recorrentes. “Recebemos muito relatos por meio das governantas que estão diariamente em contato com as camareiras. Limpar mais de 10 apartamentos por dia é considerado um número elevado, dependendo do tipo de atividade realizada”, diz.

Desafios

Maria José ressalta que a hotelaria precisa encontrar uma solução para esta conta, visto que o setor segue sofrendo com a escassez de mão de obra, já que a maioria dos profissionais tem dificuldades para aceitar a escala de trabalho.

“Precisamos reter talentos. É um desafio grande absorver mão de obra, uma vez que esses funcionários ficam pouco tempo e migram para outros setores. Os salários, salvo algumas exceções, são o teto da categoria e pouco atrativos. Em algumas regiões fora dos grandes centros, esse fator é agravado com uma remuneração que deixa a desejar”, endossa.

“Temos o desafio não apenas de encontrar mão de obra, mas também de qualificar esses profissionais, que muitas vezes não se interessam pela jornada ou até mesmo pelo trabalho em si, que é pesado e requer muito esforço físico. Não precisaria ser assim se tivéssemos melhor preparo, com materiais e equipamentos condizentes”, avalia.

Questionada pela reportagem do Hotelier News sobre possíveis soluções para este cenário, ela diz que uma alternativa são as equipes rotativas de dias de semana e aos finais de semana, criando escalas 5 x 2 alternadas. Segundo Maria José, é algo que já melhoraria muito a qualidade de vida dos colaboradores e seria um diferencial para reter talentos, muito embora essa escolha implique em aumento de custos para os hotéis.

Hotelaria - Maria_José_Dantas

Maria José aponta questões mais urgentes do setor

“A ABG não possui diálogo direcionado com as empresas para a resolução dos problemas, mas atua ao lado de outras entidades e sindicatos, como a ABIH e suas regionais, que estão mais próximos do setor. Nossa colaboração é indireta, pois nossa linha de atuação é voltada para a qualificação e capacitação de governantas, porque entendemos que existe uma carência na profissionalização da categoria, principalmente fora das grandes redes”, conclui.

Complementando esse raciocínio, Trícia Neves, sócia da Mapie, diz que não se trata apenas do salário, mas que também não se pode “romantizar” a vida de quem atua na base da hotelaria. “Sabemos que a remuneração do setor não é competitiva quando comparada com outros mercados. Algumas posições, como a de garçom, possuem opções informais com salários diferenciados que, no fim do dia, aumentam a renda do profissional”, explica.

A executiva destaca que clientes da empresa já fizeram relatos de colaboradores que foram embora por R$ 100. Segundo ela, ao analisarmos a pirâmide de necessidades do ser humano, a remuneração vem em primeiro lugar, mas é preciso também olhar para outros fatores, como o ambiente de trabalho.

“Temos que considerar as relações humanas, pois muitas vezes o colaborador opta pela demissão devido ao relacionamento com o líder, e não pela empresa em si. As pessoas têm o poder de transformar o dia. Garantir um time que se relaciona bem é vital, uma vez que este é o local onde os colaboradores passam a maior parte do tempo”, reforça.

Para Trícia, o primeiro passo para a mudanças na hotelaria é a conscientização dos empregadores, que precisam entender que o processo seletivo é uma via de mão dupla. Por exemplo, se um empreendimento chama 30 pessoas para uma dinâmica e apenas 10 aparecem, é preciso reavaliar. “As empresas também devem oferecer um pacote interessante de benefícios, tornando aquela vaga atrativa. Então, os hotéis podem questionar como estão desenhando esses pacotes para os profissionais do mercado”, sugere.

Soluções

A executiva da Mapie diz que vale a pena testar novas formas de trabalho, rever cargas horárias, expandindo o olhar para o perfil de colaborador que os hotéis estão buscando. A Alagev (Associação Latino America de Gestão de Eventos e Viagens Corporativas), por exemplo, falará sobre etarismo na edição do Lacte em 2024, colocando as gerações no centro do debate.

Hotelaria - Trícia_Neves

Trícia avalia processos seletivos do setor

“Hoje, as empresas buscam por um perfil específico de colaborador: jovem, sem filhos e com força de trabalho. Talvez esteja na hora de repensar esse modelo de pessoas que trazemos para atuar na hotelaria. Também vejo muitos clientes trabalhando suas culturas, entendendo como melhorar o ambiente de trabalho e como criar significado para essa base atuar, aproximando níveis hierárquicos”, completa Trícia.

A profissional afirma que a nova geração, que quer ter voz ativa nas decisões, acaba influenciando as outras na construção de soluções. Outro ponto relevante apontado por ela é a qualidade de vida das pessoas, que pode ser resolvida com soluções simples, como o transporte de profissionais, evitando que eles percam horas no transporte público.

“O desafio da mão de obra não é somente de uma empresa, mas da indústria como um todo. Logo, deveríamos atuar coletivamente na construção de soluções. Não adianta contratar garçons e não ter programas de formação na região. Este é um problema complexo e passa pela solução conjunta do destino, que deve se conectar para resolver a questão de forma coletiva, ou vamos continuar enxugando gelo”, completa.

O dia a dia da operação

Em conversa com o Hotelier News, Dora Souza, governanta de uma grande rede internacional, avaliou o dia a dia da operação na hotelaria com base em suas vivências. “Felizmente, a empresa em que trabalho dá todo o suporte necessário, com gestores maravilhosos que nos ajudam com todas as demandas. Agora, existem muitos pontos a serem discutidos sobre o setor de forma geral”, diz.

Hotelaria - Dora_Souza

Dora comenta trajetória e desafios no setor

“Estou há 25 anos na hotelaria e já passei por diferentes departamentos, começando pelo A&B. Migrei para o posto de mordomo, que foi minha inserção na governança. Quando entrei para o setor hoteleiro, existia um padrão de serviço mais equilibrado, com profissionais mais cuidadosos. Era a famosa hotelaria na veia“, relembra.

Segundo Dora, o desejo de crescer e se manter passou por mudanças daquela época até os dias atuais. Ela analisa que os profissionais buscam por carreiras meteóricas e não estão mais dispostos a enfrentar altas cargas horárias. “Eu, assim como outros colegas, fui conquistando espaço passo a passo, e muitos querem sair da faculdade para sentar direto em uma cadeira de gerente geral”, pontua.

Na análise da governanta, hotelaria é serviço e é necessário se especializar, gostar e aprender para chegar a cargos mais elevados. A governança, diz ela, é um departamento muito abrangente quando falamos de uma escala 5 x 2 para arrumadeiras, por exemplo. Isso significaria aumentar a carga horária para um serviço que é braçal.

“Não adianta mudar a escala e aumentar as horas trabalhadas, pois esse é um serviço árduo que necessita de reconhecimento, exige muita atenção e cuidado, pois você lida com as particularidades dos hóspedes. Aumentar o quadro de funcionários seria um mundo ideal, mas infelizmente encontramos um abismo entre contratações e retenção de mão de obra. Na minha unidade, optamos por trazer profissionais sem experiência, dando todos os recursos de treinamento e capacitação”, explica.

Principais pontos negativos

Em sua fala, Dora avalia que o salário pago atualmente na hotelaria está longe de ser o ideal, principalmente para pais e mães de família que precisam manter seus lares. “As remunerações precisam ser revistas, pois poucas empresas pagam um valor satisfatório. Os benefícios também devem ser reavaliados no caso de arrumadeiras e auxiliares de limpeza, uma vez que prestam um serviço essencial para os hotéis”, afirma.

“Outro ponto é dar condições de crescimento, com cursos e treinamentos. Contudo, muitas profissionais não têm tempo para buscar essa evolução, com demandas intensas fora do trabalho. Na minha realidade, sempre fui preocupada com a execução dos serviços e as empresas em que atuei nunca me negaram suporte. Precisamos de equipes bem amparadas para fazer um bom trabalho”, completa.

Por fim, a governanta destaca que, com tantos anos de hotelaria, o que espera do setor são profissionais realmente dispostos a entrar na rotina e superar os desafios diários, e ter a “veia hoteleira” que era encontrada anos atrás.

Veia hoteleira sem felicidade?

Compartilhando sua visão sobre o mercado, uma funcionária que preferiu não se identificar atua em um importante hotel do interior paulista e elencou alguns desafios do trabalho na hotelaria.

“Algumas das dificuldades que encontrei durante minha trajetória dizem respeito, principalmente, à jornada exaustiva, ao ritmo acelerado para conseguir atender a todas as demandas, o que tem íntima relação com a escassez de mão de obra especializada. Além disso, sempre houve pouco tempo de treinamento para se adequar aos novos protocolos”, relata ao Hotelier News.

“Em relação à remuneração, todos recebem pouco, se considerarmos a quantidade de trabalho de um profissional da hotelaria. São muitas pessoas indo e vindo todos os dias, eventos, diretoria com cobranças, reuniões, protocolos, modos de se portar e falar. Tudo isso sobrecarrega o funcionário, física e mentalmente. Não há energia para aproveitar o tempo livre, que acaba sendo somente um dia da semana, que varia de acordo com o período do ano, o que também é um ponto negativo”, acrescenta.

A profissional afirma que, como os hotéis estão sempre se utilizando de mão de obra temporária, não há esforço com o treinamento desses profissionais, sobrecarregando todos os colaboradores fixos. “Estes são somente alguns dos pontos que levam os funcionários a ficarem doentes e ter crises de ansiedade e pânico durante a jornada de trabalho. Os hotéis cobram do colaborador que ele deixe o hóspede feliz, mas onde está a felicidade de quem faz esse trabalho?”, questiona.

O ramo da hospitalidade pode ser cheio de inconveniências, como trabalhar aos finais de semana e feriados, quando, inclusive, os hotéis estão mais cheios. De acordo com Luna B. (pseudônimo), antiga recepcionista em um spa localizado dentro de um grande hotel em São Paulo, o que compensa a situação de escala são os benefícios oferecidos pela empresa.

“O salário onde trabalhava era muito, muito bom, estava acima do mercado, e os benefícios vão além do que comumente se oferece pela CLT”, afirma. Contudo, os benefícios não tornam a escala menos cansativa. “O trabalho era longe da minha casa. Levava cerca de duas horas para ir e o mesmo tempo para voltar. Precisava cumprir com oito horas e 20 minutos de trabalho por dia, além de trabalhar finais de semana e feriados, o que por si só já é extremamente estressante”, relata.

Luna aponta como fator negativo a maneira como os empreendimentos escolhem os líderes. “É mais por amizade e contato do que por dedicação e desempenho. Além disso, a rotina é bem estressante, com uma jornada de 6 x 1. Já vi profissionais dos restaurantes acumularem 100 horas de banco, e quando vão tirar férias, em vez de 30 dias, tiram mais para compensar”, finaliza.

Em suma: os profissionais que fazem a hotelaria acontecer no dia a dia apontam que é necessário que o setor promova mudanças substanciais se quiser manter sua relevância no mercado. É hora de rever os protocolos ou “em time que está ganhando não se mexe”? Fica o questionamento.

*Por Nayara Matteis, Lucas Barbosa e Yasmin Brussulo, do Hotelier News

(*) Crédito da capa: Freepik

(**) Crédito da foto: Divulgação/ABG

(***) Crédito da foto: Divulgação/Mapie

(****) Crédito da foto: Arquivo pessoal