Por Luiz Gonzaga Godoi Trigo*
 
Luiz Gonzaga Godoi Trigo
(foto: divulgação)

Hoje o Japão passa por uma profunda crise econômica, mas o país mantém seus altos índices de qualidade de vida, tecnologia e competência. Quando se fala em qualidade, a percepção passa pelos produtos e serviços japoneses, porém, nem sempre foi assim. O país saiu arrasado da Segunda Guerra Mundial e sem nenhuma competitividade internacional. Os Estados Unidos criaram então, em 1951, o Plano Colombo, um programa de ajuda econômica, técnica e comercial ao Japão. Não era apenas uma ajuda econômica. Para melhorar a indústria japonesa, os EUA enviaram especialistas em administração e engenharia para ensinar aos japoneses os princípios da qualidade industrial. É nesse momento histórico onde entram W. Edwards Deming e Joseph M. Juran e a história da qualidade no século XX toma novos rumos.
 
Imagine um país devastado pela guerra, derrotado, ocupado militarmente pelos seus inimigos e que ainda por cima trazem pessoas para dizer que seus produtos são ruins e ensinar como podem ser melhorados. O General Douglas MacArthur, comandante supremo das tropas de ocupação norte-americanas no Japão, fez uma revolução democratizante de sentido político, econômico e institucional. A ocupação militar durou até 28 de abril de 1952, quando se firmou em São Francisco o Tratado de Paz entre o Japão e os Estados Unidos.
Graças à cultura japonesa, bastante pragmática e objetiva no que se refere aos negócios, houve abertura para ouvir e entender os argumentos e procedimentos dos estrangeiros. Por outro lado havia uma história, pois os Estados Unidos tentaram contatos comerciais com os japoneses desde meados do século 19 e a ocupação militar não foi brutal ou tirânica, respeitando inclusive parte do poder do Imperador Hiroito. Para os empresários e lideres políticos japoneses, a ocupação norte-americana não foi a maior das tragédias, pelo contrário, alguns comemoraram quando souberam que o exército de ocupação seria o yankee. Seus temores eram de que os socialistas soviéticos ou os ingleses e franceses (com péssimas histórias de ocupação no antigo mundo colonial) viessem a ocupar seu país.

Abertos para aprender algo com um povo que aos poucos eles passaram a respeitar, os japoneses procuraram por em prática o ditado de que o bom aluno é aquele que supera o mestre. Portanto,
ampliaram as técnicas de SQC para algo mais abrangente denominado Controle Total de Qualidade (TQC, em inglês), que se realizava desde a matéria-prima até o produto final. Em poucos anos começaram a competir com os EUA, ampliaram sua força de produção através da Ásia, reinventaram as concepções do automóvel, da indústria eletrônica e do entretenimento.
 
O reposicionamento da indústria de guerra japonesa para finalidades pacíficas e a inserção de métodos e técnicas norte-americanas para auxiliar a economia japonesa começaram a surtir efeitos positivos em pouco tempo. Os norte-americanos faziam encomendas aos fabricantes nipônicos para abastecer suas tropas na guerra da Coreia (1950-1953) e havia queixas sobre a inconstância ou a falta de padrões de qualidade, justamente o que motivou a ida dos consultores americanos ao país. Uma das primeiras medidas foi a criação dos chamados Controle Total de Qualidade, visando aperfeiçoar os controles de qualidade norte-americanos convencionais e fazer a inspeção prévia de todo o processo produtivo, desde a matéria prima até o produto acabado.
Esses processos iniciais tiveram a grande colaboração dos consultores norte-americanos Juran e Deming, ao longo da década de 1950. Em 1962, o professor Kaoru Ishikawa elaborou os chamados Círculos de Controle de Qualidade (CCQ). Ao longo da década de 1960, eles se difundiram por todo o arquipélago japonês como parte de um movimento que visava atingir o “zero defeito” na produção. Chegaram a existir mais de um milhão de CCQ no Japão, com mais de 8 milhões de membros. No exterior, o primeiro CCQ foi criado nos EUA, na Lockheed Aircraft Corporation que, em 1973, enviou um grupo de estudos ao Japão. Com o tempo, novos métodos de controle de qualidade foram sendo estruturados e implantados, substituindo a antiga forma de CCQs.
 
O importante é que o Japão entendeu que a modernização de suas estruturas era uma necessidade imperiosa para enfrentar os desafios contemporâneos e teve uma abertura para com os consultores estrangeiros, os quais foram até seu país para ensinar-lhes algo novo. Um dos valores mais fortes da cultura japonesa é justamente essa abertura para o novo, desde que traga benefícios e novas possibilidades de desenvolvimento.
O Japão é um ótimo exemplo de como qualidade depende da cultura, abertura e disponibilidade de uma pessoa ou grupo para ser implantada, aperfeiçoada e ampliada. 

Uma visão histórica
Em 1956, uma publicação especial japonesa comemorava a crescente onda de progresso e desenvolvimento do país. A própria revista, com 46 cm X 25,5 cm, em cores e 320 páginas é, em si, um exemplo de excelência em qualidade da indústria gráfica japonesa da época. Aqui estão reproduzidos os primeiros parágrafos do texto de Jungo Sakura (tradução do inglês):

 
“Da reconstrução ao progresso – A terrível guerra na qual o Japão esteve envolvido terminou no dia 15 de agosto, quinze anos atrás. Hoje, ainda nos lembramos daquele dia como um pesadelo. Quando a guerra terminou, muitas das maiores cidades no Japão tinham se tornado áreas devastadas com solos calcinados. As estruturas de aço dos edifícios destruídos e carbonizados ficavam à vista, derretidas e retorcidas, e as árvores desfolhadas pelos incêndios formavam cenários fantasmagóricos. Havia infinitas pilhas de destroços. Nas vizinhanças, pessoas viviam como ratos amontoadas em casebres feitos de pedaços de lata queimada ou de restos de abrigos antiaéreos. As pessoas se perguntavam se um dia os japoneses voltariam a viver como seres humanos novamente. Eles sequer podiam se esforçar para viver como pessoas normais. Completamente desesperançados, eles apenas lutavam pela mera sobrevivência cotidiana. Fábricas e lojas estavam fechadas ou destruídas. As poucas lojas ofereciam em suas escassas prateleiras apenas potes e panelas feitas de duralumínio, um dos materiais essenciais para a fabricação de aviões e armas durante a guerra. De aviões a panelas, era o melhor que os japoneses podiam fazer para converter sua indústria bélica em indústria nos tempos de paz. Ginza, hoje uma das mais sofisticadas ruas comerciais do mundo, estava soterrada por entulho esperando ser removido. Havia pessoas morrendo de fome até mesmo em Ginza. Hoje, lembramos da década passada como um sonho mau. A economia japonesa, durante os últimos onze anos, não apenas percorreu um longo caminho rumo à recuperação, mas também ultrapassou os níveis de antes da guerra em muitos campos.”
Fonte: New Japan – vol. 9, 1956/1957. The Mainichi Newspapers, pág. 22.

*Luiz Gonzaga Godoi Trigo é escritor, pesquisador e professor associado à Escola de Artes, Ciências e Humanidades da Universidade de São Paulo.

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