Existe um velho ditado que diz que “mar calmo nunca fez bom marinheiro”. Transportando a metáfora para 2020, o período foi marcado por um nunca antes visto tsunami. Mesmo resiliente, o turismo não escapou do oceano revolto e viu subir o número de pedidos de recuperação judicial, em uma relação de causa e efeito da pandemia. Com empresas agonizando, muitas recorreram à medida para evitar fecharem as portas. Agora, seria mesmo este o instrumento jurídico ideal para organizações em risco de solvência? Estamos diante de um bote salva-vidas ou de uma âncora?

Bem antes do mundo sonhar com o coronavírus, a Avianca Brasil já tentava um pedido de recuperação judicial antes de decretar falência. No ano passado, vimos importantes empreendimentos hoteleiros como o Maksoud Plaza entrar para a lista, com dívidas na ordem dos R$ 400 milhões. Caminho similar fez, alguns anos antes, a Hotéis Othon, que acumula dívidas trabalhistas e tributárias milionárias.

Em dezembro de 2020, a Quist Investimentos, empresa especializada em reestruturação de dívidas e assessoramento de empresas em dificuldades, fez uma análise de 10 segmentos suscetíveis à recuperação judicial nos próximos meses. Os dados foram levantados com base em informações do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) e entidades ligadas à indústria e ao setor de serviços.

Na análise da Quist, as empresas da cadeia do setor aéreo são as segundas colocadas no ranking de probabilidade de pedir recuperação judicial, com 71,7% de queda no faturamento em abril. Na sequência aparecem tecidos, vestuário e calçados (-60,6%), turismo (-54,6%) e serviços de hospedagem e alimentação (-47,7%).

“Mesmo com a retomada gradual experimentada no mês de maio, estes setores tiveram encolhimento muito profundo e terão muita dificuldade de sair ilesos da crise, mesmo que a economia ganhe fôlego nos próximos meses”, diz Douglas Duek, CEO da Quist, que atualmente está à frente de 46 projetos de RJ com dívidas estimadas em mais de R﹩ 5 bilhões.

recuperação judicial - grafico

Recuperação judicial: o que é e quando pedir?

Segundo Marcos Novakoski Fernandes Velloza, advogado especialista em recuperação judicial e sócio da área de Contencioso e Arbitragem da Velloza Advogados, a medida é um instrumento jurídico previsto em lei, que permite que a empresa em dificuldade financeira possa fazer um acordo com seus credores. Desta forma, um prazo para o pagamento das dívidas é estipulado. “A ideia é manter a atividade da companhia, bem como os empregos de seus colaboradores, permitindo que a empresa ganhe tempo para pagar o que deve”, explica.

Em linhas gerais, a opção é válida quando não existe lucro o suficiente para cumprir as obrigações, como pagamento de credores, impostos, fornecedores e funcionários. A negociação não interessa apenas ao devedor, mas também às outras partes envolvidas nas dívidas. Velloza destaca que, para se reerguer, é necessário montar um plano de recuperação judicial em comum acordo – e com devida aprovação dos credores. “Ambas as partes participam ativamente do processo. É uma forma de ganhar prazo dentro da lei. O plano é passado para um juiz e os credores avaliam a viabilidade”, explica. “Fatores externos como a pandemia colocam em risco ramo de serviços como o turismo e a hotelaria”, avalia.

Para solicitar o pedido, é necessário passar por três fases: postulatória, deliberativa e de execução. A primeira se trata da entrada da ação judicial, apresentando as razões da crise e contabilidade dos últimos três anos, detalhando dívidas, bens particulares dos proprietários e outros documentos. A deliberativa é a etapa em que será decidido se a empresa poderá ter direito à recuperação judicial ou não. Se o empresário cumprir os requisitos para tal e a documentação estiver em ordem, o juiz dará início ao processamento do pedido do devedor. Se houver o aval da assembleia de credores, terá início a fase de execução. Nela, o plano aprovado será colocado em prática até que o credor cumpra todas as obrigações previstas no acordo.

Lei de Falências

Com as novas demandas do mercado devido à pandemia, leis e prazos foram atualizadas. É o caso do Projeto Lei 4.458/2020, que reformula a Lei de Falências. A nova legislação traz mudanças importantes que devem trazer benefícios às empresas. Após uma ampla revisão, foram introduzidos dispositivos que tendem a melhorar a utilização de instrumentos legais de recuperação judicial e de falências.

Uma das novidades é a ampliação do prazo de parcelamento de tributos federais. Houve a extensão para 120 meses na data de parcelamento existente para empresas que estiverem em processo de recuperação judicial e concessão de crédito.

Velloza explica que, credores parceiros podem continuar fornecendo aos seus devedores, porém com o acordo de receber os pagamentos com prioridade. “O parceiro terá tratamento diferenciado, pois quando uma empresa está nessa situação ninguém quer fornecer. Assim, ele terá preferência nos recebimentos e continua ajudando a fomentar o setor”.

Respiro para o turismo

Diante do cenário incerto em função do avanço da segunda onda, a recuperação judicial é um caminho que ninguém quer pegar, porém dadas as atuais circunstâncias, a medida se torna viável. Com os acordos, as empresas ganham tempo para respirar e preservar postos de trabalho sem decretar falência.

No caso do turismo, muitos empreendedores são de médio e pequeno porte, sem musculatura para manter suas atividades. “Sem dúvidas, foi um dos setores mais atingidos, em especial as companhias aéreas. A retomada está acontecendo com uma série de restrições, menor capacidade e maiores custos. São fatores que dão brechas para uma possível recuperação judicial”, comenta Velloza.

(*) Crédito da capa: reprodução

(**) Crédito da gráfico: Quist Investimentos