Aos mestres, com amor

“É impossível saber até onde vai a
influência de um professor
na vida de uma pessoa”.

A formação profissional dedicada à hotelaria, no Brasil, não é recente. Diz-se isso considerando-se não apenas os cursos específicos, mas também o conteúdo trabalhado nos programas de turismo e, de maneira indireta, mas associada, aos estudos de lazer.

Os primeiros cursos superiores de turismo (que tratavam do tema da hotelaria como equipamento turístico) datam do início da década de 1970 (quando a Universidade Anhembi Morumbi e a Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo – ECA/USP começaram a operar seus programas) e é da década de 1980 a implantação dos primeiros programas técnicos de hotelaria (especialmente os ofertados pelo Serviço Nacional de Aprendizagem Comercial – SENAC), chegando depois os cursos superiores (tecnológicos e bacharelados), no SENAC e nas Faculdades Renascença, e nas décadas seguintes em centenas de faculdades particulares e também no sistema público.

A história dos programas de educação brasileiros dedicados às áreas de turismo e hospitalidade já foi bem mapeada e interpretada por professores/pesquisadores queridos, como o Prof. Mário Beni, a Profa. Mirian Rejowski, o Prof. Luiz Trigo e a Prof. Ada Dencker, para citar somente alguns nomes, à guisa de representatividade de um grande corpo docente que há décadas dedicam-se à formação profissional.

Sou egressa de um Curso Superior de Tecnologia em Hotelaria (o do SENAC São Paulo), formada na quinta turma, a de 1993. Desde que cheguei à faculdade ouço falar do (e vivo na pele o, como aluna, profissional e professora) desafio da integração escola-mercado. Na minha opinião, um dos grandes paradoxos e um dos discursos mais insensatos, uma vez que me parece óbvia a necessidade que uma parte tem da outra, para garantia da própria subsistência em princípio e para o sucesso de ambas, ao final.

Em que pese os cursos terem mudado no decorrer dos anos, no que tange à modalidade (presencial e a distância), grau (técnico ou superior – de tecnologia, licenciatura ou bacharelado, alcançando as pós-graduações) e vinculação institucional (privados ou públicos), fato é que a escola sempre atendeu ao mercado. E isso sempre se deu de diversas formas, embora a mais comum seja a inserção de alunos e/ou egressos no mercado de trabalho a partir do provimento de estagiários, categoria profissional comumente menos valorizada do que deveria ser e que carrega a pecha de que o mercado faz um favor às escolas, concedendo uma vaga a um jovem que tem por obrigação cumprir algumas horas de prática supervisionada, sem o que não integraliza seu programa e não cola grau. Uma situação que muitas vezes é esdrúxula, quando poderia ser um contrato ganha-ganha, com melhores resultados para estudantes e empresas.

A educação brasileira em geral é ruim. Ano após ano, vemos estatísticas que escancaram uma situação histórica de negligência e irresponsabilidade de governos e da sociedade civil em relação à formação e os buracos decorrentes disso. Neste sentido, não é exagero dizer que a escola, como um todo e em todos os níveis, sobrevive e subsiste, como que num ato de permanente resistência. No Ensino Superior e nas áreas de turismo e hospitalidade não é diferente.

Mesmo diante de tantos desafios, da falta permanente de recursos, de uma descrença recorrente e das imensas dificuldades que se colocam todos os dias nas nossas salas de aula, sou uma entusiasta dos processos formais de educação em turismo e hospitalidade, no Brasil. Quando me graduei, tive oportunidades de trabalho maravilhosas e isso aconteceu simplesmente porque o mercado brasileiro carecia de bons profissionais, buscava poder contratar funcionários brasileiros (era enorme o número de profissionais estrangeiros, especialmente nos cargos de supervisão e gerência de hotéis melhor estruturados e mais bem posicionados em seus mercados de atuação e, de alguma maneira, associados às redes internacionais), uma vez que a Folha de Pagamento é por si o maior gasto dos hotéis e profissionais estrangeiros custam caro e ainda demandam uma série de benefícios complementares, que acabam por impor um enorme overhead.

No decorrer dos anos e com a formação de mais e mais profissionais em território nacional, a hotelaria brasileira foi mudando de perfil e hoje temos ex-alunos de todos os programas de formação já existentes no país ocupando cargos de chefia, empreendendo e mudando a cara do trabalho em turismo e em hotelaria. Não precisamos, no geral, mais buscar gerentes gerais lá fora ou gastar fortunas com educação corporativa, enviando para o exterior pessoas que ocupam cargos de liderança. A melhor literatura mundial sobre operação e gestão hoteleiras, desenvolvimento e implantação de empreendimentos hoteleiros, arquitetura hoteleira e tecnologia em gestão de serviços está disponível para todos, em livros, artigos e publicações técnicas que podem ser acessadas em um clique. Até a formação especializada em assuntos de ponta ou muito específicos pode ser buscada com mais facilidade e menor custo do que antigamente. E a experiência acumulada nos últimos 20 anos coloca profissionais brasileiros em condição plena e justa de concorrência.

Como professores, também nós não escapamos do aprendizado constante e continuado. E já não somos (ainda bem!), se é que um dia fomos, detentores de conhecimento algum. Ao contrário, aprendemos constantemente com nossos estudantes em sala de aula, muitas vezes porque eles estão mais próximos dos conceitos e temas que são relevantes e que nossa geração não absorveu adequadamente – a tecnologia, a inovação, o empreendedorismo, a criatividade, a própria informação, disponível na tela dos celulares que eles operam tão bem. A cada novo semestre enxergo, depois de mais de três décadas vinculada ao Ensino Superior em hotelaria, oportunidades incríveis de aprender com os jovens com os quais encontro e convivo.

Paradoxalmente, a distância entre escola e mercado, a mim me parece, continua. Ainda há barreiras, especialmente em relação à compreensão do papel do professor e da escola e ao impacto do que é discutido nas salas de aula, pesquisado nos inúmeros projetos e testado em ações de extensão, sobre os resultados empresariais. Ainda não há uma relação ganha-ganha. Infelizmente, o professor é visto como uma figura retrógrada, desatualizada e incapaz de apresentar ao mercado as soluções para os problemas cotidianos com os quais se deparam as empresas, sejam elas uma padaria, um hostel, um bar, um alojamento estudantil ou um grande hotel.

Reflitam: Quem de vocês, na posição de liderança setorial ou geral de um hotel, contrataria um professor, sem pestanejar, sinceramente? Sou capaz de apostar que pensariam algo como: “Não, ele está fora do mercado, não está por dentro das estratégias de gestão do setor e não conhece os mais modernos sistemas, rotinas, procedimentos e ferramentas operacionais. Não daria bons resultados. Melhor contratar alguém com experiência prática”.

Penso vir deste tipo de pensamento a maior das contradições, pois é este mesmo professor que prepara e entrega aos mercados milhares de profissionais, semestre após semestre. São pessoas capacitadas e com um potencial enorme de refletir sobre problemas reais, à luz do que receberam durante anos nos bancos escolares e que guardam na memória, nos cadernos e, hoje em dia, nas milhares de imagens e anotações feitas de/em seus celulares, dentro e fora da sala de aula. Confesso que no início não entendi essa coisa de não terem caderno – muitos não os têm! – e que me pareceu surreal aprenderem de maneiras tão diversas das nossas. Mas é assim. As gerações mudam, os hábitos se modificam e a educação acaba por se adaptar. Tem sido assim nos últimos 21 meses, em que moldamo-nos ao ensino remoto. Devo lhes dizer que nunca estive tão cansada e que trabalho por muito mais horas do que no ensino presencial. E devo lhes dizer que nunca foi tão importante unirmo-nos, professores, mercado e estudantes, no sentido de pensar nos processos de inserção profissional no mercado de trabalho e também no redesenho dos temas que devem ser tratados em sala de aula, como uma demanda vinda das empresas.

Cada vez mais busco compreender as razoes pelas quais este distanciamento ainda subsiste entre escola e empresas. A cada dia repito a mim mesma que, sim, meus alunos chegarão ao mercado de trabalho e terão plenas condições de identificar problemas, buscar soluções, implantá-las e serem reconhecidos por isso. Felizmente, há ainda um pequeno grupo de pessoas que também acredita nisso. Duas dessas pessoas são o Peter Kutuchian e o Márcio Moraes (meu ex-aluno, diga-se!).

Eles idealizaram, em 2010 o Prêmio VIHP (Very Important Hotel Professional), dedicado exatamente a identificar, reconhecer e homenagear os melhores profissionais da hotelaria, em território nacional. Os critérios de avaliação dos candidatos incluem sua formação, básica e continuada.

Já foram seis edições. No próximo dia 6 de dezembro, acontecerá a sétima, a partir das 19:30, no Novotel Morumbi, em São Paulo, em cerimônia híbrida. O prêmio abrange mais de 20 categorias. Em 2016, foi criada a mais recente delas, que não diz respeito a cargos ou funções, mas está ligada exatamente ao papel do professor na formação desses profissionais que, ao alcançar uma posição de destaque e ter um desempenho notável, são reconhecidos como finalistas e premiados, nesta cerimônia.

Tive a alegria de sugerir esta última categoria ao Peter e ao Márcio, que prontamente acolheram a sugestão. Nossa intenção, que fique claro, é lembrar aos profissionais que houve, no processo de formação deles, figuras importantes, que colaboraram de diversas maneiras para que eles crescessem e se profissionalizassem. Apresentei-a, em 2016, dizendo que “os professores são o elo entre escola e mercado e muitos de nós nos tornamos profissionais bem sucedidos por conta de sua influência, exemplo e legado”.

Escolhemos então dar à categoria o nome de Prêmio Ronaldo Barreto de Reconhecimento Acadêmico. Ronaldo Lopes Pontes Barreto, baiano de apurado paladar, formado pela renomada École Hôtelière de Lausanne (Suíça), trabalhou na área de alimentação do SENAC de São Paulo por 38 anos e teve papel importante na implantação de cursos de hotelaria e gastronomia, em diversas instituições. Professor inspirado, de humor peculiar e enorme capacidade para identificar talentos promissores, formou centenas de jovens e se estabeleceu como uma das figuras mais importantes do Curso Superior de Tecnologia em Hotelaria do SENAC. Querido, acompanhava a carreira dos ex-alunos, frequentemente visitando-os nos mais diversos restaurantes de São Paulo em que estivessem trabalhando, muitos de propriedade dos chefs que ele admirava, ou para os quais torcia o nariz, na maior parte das vezes por conta de invencionices que, dizia, “vão contra tudo o que a gente diz em sala de aula”.

Em 2011, Ronaldo nos deixou. Em 2018, deixou-nos também o professor José Ruy Veloso Campos, homenageado na primeira edição do Prêmio Ronaldo Barreto de Reconhecimento Acadêmico, em 2016. Tive a alegria de entregar a ele o VIHP, ao lado do meu colega de faculdade e amigo, o Prof. Marcelo Traldi, também ele uma figura tarimbada nas salas de aula dos programas de hotelaria de São Paulo e um profissional destacado na área de Alimentos & Bebidas, como consultor para planejamento, desenvolvimento e gestão de bares, restaurantes e estabelecimentos congêneres.

Entregar ao José Ruy o primeiro dos prêmios da categoria emocionou-me por muitas razões. Infelizmente, ele não foi meu professor. Era diretor na época em que estudei e sua influência foi sentida nos corredores, no cotidiano como aluna e mais tarde como funcionária do então Centro de Estudos de Administração em Turismo e Hotelaria do SENAC de São Paulo, o CEATEL. No meu caso, a relação profissional escaparia para a vida, numa amizade valorosa, de quase 30 anos.

José Ruy sempre se dedicou à educação profissional em hotelaria, muitos anos dentro do próprio SENAC. Foi pioneiro na criação de programas, ousado no estabelecimento de parcerias institucionais e generoso na construção de diversos projetos pedagógicos de cursos de hotelaria e gastronomia, no Brasil e no exterior. Há a marca dele nos currículos de muitos programas de graduação da área de hospitalidade. Foi ainda inovador na adoção de instrumentos diferenciados de ensino-aprendizagem, como o uso do cinema em sala de aula (ação que gerou os filmes O guarda-parques no cinema e O hotel no cinema, produzidos pelo SENAC de São Paulo), na forma de material instrucional.

Este esforço de reconhecimento e valorização do trabalho do professor segue firme nesta sétima edição do Prêmio VIHP. Convidamos todos a acompanhar a cerimônia de premiação. Sem spoilers, posso garantir que o Prêmio Ronaldo Barreto de Reconhecimento Acadêmico – edição 2021, irá para excelentes mãos, mais uma vez. Será dado, na forma de homenagem respeitosa e afetuosa, a alguém com uma carreira extremamente bem sucedida, pautada na conduta ética, no trabalho responsável e sério e em uma busca apaixonada e dedicada pelo conhecimento, no mercado e na academia.

Eu, uma vez mais, estou certa, vou me emocionar. Mas professor é mesmo assim…

Um abraço,

Ana Paula Garcia Spolon
Professora e pesquisadora para as áreas de Hospitalidade, Hotelaria e Estudos Urbanos
Faculdade de Turismo e Hotelaria, Universidade Federal Fluminense (UFF)

(*) Crédito da foto: arquivo pessoal/Ana Paula Spolon