A necessidade de reinvenção trazida pela pandemia da Covid-19 acarreta em diversos fatores ligados ao mercado de trabalho. Se, por um lado, temos o incentivo ao empreendedorismo e a “casca” da resiliência, por outro há o acúmulo de funções gerado pelos cortes no quadro de colaboradores. Ser paciente é uma virtude, mas a luta contra o desgaste emocional e físico tornou-se diário e, por vezes, constante. Saber, então, o que fazer em momentos assim, bem como entender seus direitos pode ajudar a esclarecer o turvo momento que vive a indústria de viagens.

Para Daiane Andognini, CEO da Hug Gestão de Pessoas, a complexidade do assunto está atrelada diretamente aos impactos econômicos vividos no setor turístico em geral. Assim, em sua visão, pensar na saúde mental dos empregados com o caixa vazio – realidade de alguns hotéis do país – torna-se secundário para muitas lideranças. É natural, afinal seu negócio está em jogo. Então, nessas horas, o trabalho triplica e a sobrecarga do colaborador acaba também em segundo plano.

Acúmulo de funções

Daiane: gestor precisa incentivar funcionários

“O contexto financeiro é crucial para pensar na saúde mental da equipe. É um assunto importante e pode acometer até mesmo o empregador. Sendo assim, o primeiro ponto para manter o ambiente saudável neste sentido é o gestor estar bem. Elaborar planos e traçar metas realistas, mesmo que negativas, demonstra transparência e mantém a proximidade com empregados”, diz Daiane.

A especialista em RH (Recursos Humanos), no entanto, admite que essas e outras boas práticas, como comprometimento a longo prazo, são adotadas em nenhum ou poucos dos pequenas e médias empresas. Portanto, tais ações servem como dicas aos que não prestam a devida atenção à motivação e engajamento do corpo de colaboradores.

Além disso, ao abordar a questão do acúmulo de funções, Daiane cita maneiras de driblar os problemas que isso causa, como ansiedade, nervosismo, tristeza e etc. “Pense em organização, momentos de relaxamento, controle de respiração e pausas estratégias. Se conseguir aplicar todas ou a maioria desses movimentos, é capaz que fique mais fácil lidar com o alto volume de trabalho atual”, explica.

Acumulação de funções: direitos

Acumulação de funções

Pinto e Silva: sindicatos devem atuar pró-trabalhador

Com o objetivo de também entender a esfera jurídica do problema da acúmulo de funções, a reportagem do Hotelier News consultou Otávio Pinto e Silva, professor da Faculdade de Direito da USP (Universidade de São Paulo) e sócio do Siqueira Castro Advogados. Ao especialista, a questão foi direta: é legal, juridicamente, um profissional realizar mais funções do que está previsto em seu contrato de trabalho sem aumento na remuneração?

De acordo com Pinto e Silva, não existe meio legal que evite esse tipo de situação. O pagamento do serviço, ele explica, é fruto de convenção coletiva, ou seja, acordo entre sindicato patronal e sindicato profissional. Portanto, os níveis contratuais são de responsabilidade do duo empregador-empregado.

“O profissional é contratado para exercer a função na qual tem alguma formação. Porém, durante a convenção coletiva, é comum que se criem condições não previstas na CLT (Consolidação das Leis do Trabalho)”, pontua.

Para exemplificar o que está dizendo, o professor relembra o parágrafo único do artigo 456, presente na CLT. Nele, se diz que “a falta de prova ou inexistindo cláusula expressa e tal respeito, entender-se-á que o empregado se obrigou a todo e qualquer serviço compatível com a sua condição pessoal”.

Traduzindo, o acúmulo de trabalho colocado ao trabalhador, junto com a não remuneração pelo trabalho extra, é, no arcabouço jurídico, responsabilidade do próprio. “A Lei Trabalhista não tem prescrições específicas ao assunto. Isso deve ser objeto dos sindicatos, que conhecem a peculiaridade do setor que defendem”, conclui Pinto e Silva.

Sentindo na pele

O caminho percorrido pela reportagem nos trouxe à Simone — homônimo inventado para garantir confidencialidade à profissional — que atua na hotelaria desde 2014. Com passagens por hotéis de São Paulo e resorts do Nordeste, ela está há duas semanas desempregada. E o motivo direto, diferente de muitos casos, não é a pandemia.

Acumulação de funções

Medo inclui perda de emprego e exposição ao vírus

“Fui demitida porque me recusei a assinar um contrato ilegal. Com a reedição da MP 936, a pousada onde trabalhava acionou a minuta sobre a suspensão do contrato de trabalho. Os empregadores, porém, queriam que eu continuasse trabalhando normalmente. De 40 funcionários, fui a única que não se sujeitou aos termos e, por conta disso, estou sem trabalho desde 4 de maio”, conta.

O relato de Simone, que tem experiência nos setores de Recepção e Reservas, continua. “De forma geral, nos empreendimentos que passei em meio à pandemia, o desgaste emocional está ligado principalmente a não saber se no dia seguinte ainda terei emprego. E isso desencadeou em uma série de questões, como ansiedade, insegurança, angústia e crises de choro, além, claro, de aceitar a acúmulo de funções”, salienta.

Em relação ao trabalho exacerbado, ela foi simples no que diz respeito à diferença entre um funcionário multitarefas e o que está sobrecarregado. “É fácil. Vira acumulação quando você sabe que se não fizer, ninguém vai fazer”, diz.  Todos os defeitos do setor hoteleiro exclamados por ela são acompanhados de outros medos. A preocupação com o emprego é apenas um deles.

“A pandemia trouxe novidades boas e ruins. No operacional, tivemos que aprender a lidar com novas informações, comportamentos de hóspedes e a segurança sanitária. Não é fácil. Alguns hóspedes, por exemplo, não usam máscara ou respeitam o distanciamento social. Esse tipo de situação também desgasta emocionalmente o funcionário, que, às vezes, é até maltratado por fazer o seu trabalho”, afirma Simone.

A realidade exposta, em termos diretos e sinceros, não surpreende em certa medida. Com todas as questões que permeiam a pandemia da Covid-19, incrivelmente, a exposição à doença é mais um detalhe.

(*) Crédito da capa: Random Institute/Unsplash

(**) Crédito da foto: Divulgação/Hug Gestão de Pessoas

(***) Crédito da foto: Marcos Santos/USP Imagens

(****) Crédito da foto: Nik Shuliahin/Unsplash