Quando imaginamos um gerente de hotel ou o diretor de uma grande rede, logo nos vem à cabeça um homem branco, de meia idade, impecavelmente vestido como manda o figurino. O estereótipo enraizado em nosso inconsciente coletivo é induzido pela imagem de sucesso que a sociedade construiu em séculos de puro machismo e racismo estruturais. Muitos anos e lutas depois, a diversidade criou espaço para questionar esses padrões. Após debatermos a falta de protagonismo feminino na hotelaria, direcionamos a discussão para outra importante pauta: a escassez de lideranças negras no setor.

Antes de começarmos a nos aprofundar nas falhas que ainda permeiam o mercado de hospitalidade quando o assunto é inclusão racial, vale destacar alguns pontos. O primeiro, é que a branquitude não é uma exclusividade da hotelaria. Nas empresas brasileiras, menos de 30% dos cargos de liderança são ocupados por pessoas negras. O percentual é baixo e ainda sofreu queda. Em 2018, a população preta ou parda ocupava 29,9% dos cargos gerenciais.

Em 2019, esse índice caiu para 29,5%, de acordo com o IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística).
Ainda segundo o instituto, os negros representam 56% da popualçao brasileira. Em 2019, o Instituto Ethos apontou que entre as 500 empresas de maior faturamento do país, os negros são de 57% a 58% dos aprendizes e trainees, mas na gerência representam 6,3%. No quadro executivo, a proporção é ainda menor: apenas 4,7%.

Incomodado com o silêncio do setor quanto ao tema e impulsionado pelo que chama de “solidão racial”, o hoteleiro Hubber Clemente resolveu colocar o dedo na ferida e levantar debates. Fundador do canal no YouTube Negros & Pretos: Afro Turismo e Afro Hotelaria, o profissional, entre suas muitas e legítimas inquietações, destaca o negacionismo por parte do mercado. “Não é falado, não é discutido. O debate ainda não chegou à mesa. Quando você não conversa, você finge que o problema não existe. Estamos atrasados nesse aspecto e muitos insistem em negar os fatos”.

Enquanto outros segmentos, como o varejo, por exemplo, vêm se movimentando para transformar essa realidade, como é o caso da Magazine Luiza, que abriu programas de trainee voltados para negros, a hotelaria segue sem querer quebrar o teto de vidro. Muito embora o cenário esteja longe de ser o ideal, outros países descortinaram o problema e começaram a se mexer.

Nos EUA, hoteleiros negros fundaram a NABHOOD (National Association of Black Hotel Owners, Operators & Developers), entidade que se dedica a tornar o setor mais inclusivo. Para Clemente, iniciativas dessa natureza fazem a diferença, mas ainda estão longe de ser uma realidade por aqui. “Enquanto lideranças negras norte-americanas se organizam para se posicionar, no Brasil nem falamos sobre isso. Os veículos de comunicação não tocam no assunto e não temos nenhum estudo sobre o tema”, lamenta.

lideranças negras - hubber clemente

                 O hoteleiro Hubber Clemente criou um canal no YouTube para debater o tema

Lideranças negras: relações de poder

Enquanto no corpo executivo corpos negros ainda são exceção, na base operacional o cenário é diferente. Como consequência de um retrato histórico do país, os profissionais afrodescentes ainda protagonizam cargos da base da pirâmide, como camareiras, faxineiras, mensageiros, garçons e cozinheiros.

“A diversidade ainda é uma visão de Casa Grande e Senzala. Os negros estão na base, mas quando vamos para o topo é quase inexistente a presença desses profissionais. E, pelo fato de estarmos nessas ocupações, muitos hoteleiros acreditam que não existe racismo no setor”, complementa Clemente.

Diretor geral de um dos hotéis de luxo mais icônicos da capital paulista, Wellington Melo é uma das lideranças negras mais expressivas do setor atualmente. O executivo chegou ao topo com um bonita trajetória dedicada ao Unique Hotel, onde começou como garçom e foi galgando promoções enquanto, em paralelo, preparava-se para funções de liderança. De origem periférica, o executivo tem uma história de vitórias que serve de exemplo e inspiração.

“Trata-se de um cenário real não só na hotelaria, mas em praticamente todas as empresas brasileiras. Acredito que, no setor hoteleiro, essa condição é ainda mais evidenciada por ser um setor ligado a serviços e termos uma grande quantidade de pessoas negras nos cargos de base. Por isso faz-se extremamente necessário começarmos a nos questionar do por quê isso acontecer. Entender a razão da grande maioria presente nos cargos de base não estarem, com o passar dos anos, assumindo posições de lideranças e destaques dentro destas instituições se executarem um bom trabalho”, ressalta Melo.

Falta de oportunidades e desigualdade econômico-social são alguns dos fatores que Paulo Fernandes, diretor geral do Grand Palladium Imbassaí, aponta como causadores do cenário. “É inegável que as oportunidades para negros no Brasil são diferentes (dos brancos). Existe uma minoria que se destaca e consegue fazer um trabalho de notoriedade. Em um país como o nosso, é complexo ter o entendimento que o mercado é tão limitado. É triste achar que esses profissionais são definidos pela cor da sua pele”.

lideranças negras - wellington melo

                            Wellington Melo começou como garçom até chegar a diretor geral

Falta de programas inclusivos

Se olharmos com distanciamento, além do racismo estrutural, a falta de programas de inclusão racial em grandes redes envelopa todos os problemas até aqui citados. Conhecida por pregar a diversidade em seu quadro de colaboradores, a Accor engloba minorias de diferentes frentes em suas ações, mas não possui iniciativas direcionadas aos negros.

“A empresa prioriza o diálogo em todos os tipos de diversidade, independente de ser racial. Há alguns anos, a Accor vem trazendo essa conscientização de referências negras sobre a importância do tema. Existem fóruns que já foram realizados sobre diversidade de forma geral. É uma rede muito inclusiva”, salienta Tânia Cachoeira, gerente geral do Mercure Salvador Pituba.

Segundo o diretor do Unique, o empreendimento tem a pluralidade em seu DNA, mas há dois anos criou um Comitê de Diversidade e Respeito composto por funcionários de diferentes setores e cargos para entender como se engajar ainda mais nessas pautas.

“Além deste comitê, buscamos o auxílio de uma consultoria externa, em que contratamos a empresa Mais Diversidade para nos ajudar na pesquisa de mapeamento da nossa empresa e também nos direcionar em como sermos o mais assertivo possível nas ações a serem realizadas”, afirma Melo.

Já o Palladium Hotel Group, detentor do Grand Palladium Imbassaí, não possui um posicionamento específico em relação ao tema. “A empresa não conta com nenhum tipo de programa, mas tenta reduzir essas diferenças. Eu, particularmente, acho que a questão deveria ser tratada de forma natural. Não estou no quadro da rede há anos, mas fui escolhido para a posição pelo meu potencial, minha história e meu currículo”, avalia Fernandes.

“A Choice Hotels está caminhando com um programa, mas no Brasil ainda não temos nada. A hotelaria escolhe maneiras paliativas de resolver problemas. A Accor fez pontualmente uma inclusão de imigrantes, em sua maioria negros, mas o foco era a origem, não a raça. Já a Hilton possui um projeto de inclusão racial, mas ainda não chegou aqui. Fico me perguntando se o setor está mesmo preparado para isso”, questiona Clemente.

lideranças negras - paulo fernandes

                           Paulo Fernandes destaca diferenças de oportunidades no cenário

Racismo velado

E por essa mesma falta de lideranças negras no setor que muitos gestores já passaram por episódios de racismo dentro e fora dos empreendimentos. Nelson Moreira, gerente geral do ibis Recife Boa Viagem, conta que dentro do hotel sofreu apenas um caso pontual há alguns anos, mas que da porta pra fora a história é diferente.

“Dentro da unidade os funcionários respeitam muito, pois conseguimos formar essas pessoas. Temos muitos colaboradores negros que admiram ter um gerente geral como eles. Já na sociedade, quando conto que trabalho em hotel, ninguém pergunta se eu sou o gerente, mas o segurança, o manobrista ou o garçom”, revela Moreira.

Para a gerente do Mercure, o preconceito vem em dobro pelo fato de ser mulher e negra. “Ter o título de gerente geral tem um peso a mais. Felizmente, nunca passei por situações racistas dentro do hotel, mas na rua, em lojas é outra realidade. Existem preconceitos que a gente nota pelo olhar, que já percebi algumas vezes que fui representar o Mercure. Como estamos acostumados a isso, fica mais fácil de identificar”.

Proprietária da Ackee Pousada, em Olímpia (SP), Carol Damia explica que sofreu racismo tanto por parte de hóspedes, quanto de fornecedores. “Em várias ocasiões chegavam para me oferecer produtos e serviços e pediam para chamar a minha patroa. Não ligavam a minha imagem à posição de poder e tomada de decisão. Já alguns hóspedes me tratavam diferente das minhas funcionárias brancas e até mesmo se direcionaram a recepcionista, que é branca, como proprietária. Percebo que me dar credibilidade é difícil”, relata.

Wellington Melo afirma que o preconceito que sofreu foi mais devido às suas origens periféricas do que em relação a cor de sua pele. “Por trabalhar com luxo, por algumas vezes durante a trajetória existiu a dúvida de algumas pessoas sobre o quanto eu estava preparado para assumir determinada posição. Este é um comportamento que precisamos também buscar mudar dentro do nosso setor. Venho buscando entender todos estes pontos e quais são as reivindicações para, a partir daí, saber o que posso fazer e qual o meu papel”.

lideranças negras - carol damia

                 Carol Damia conseguiu aumentar a presença de negros em sua pousada

O impacto no hóspede

E não é apenas no quadro de funcionários que a hotelaria se revela um setor majoritariamente branco. A escassez de diversidade também pode ser sentida nos próprios hóspedes.

À frente da pousada desde 2015, Carol percebeu a falta de famílias negras chegando ao empreendimento, o equivalente a apenas 3% da demanda. “Achei aquilo muito sintomático. Queria entender o porquê meus pares não estavam naquele espaço. Existe uma questão cultural que nos faz entender que nós não deveríamos estar em determinados lugares”, avalia.

Devido a essa falta, Carol passou a conversar com famílias negras para entender o real motivo da escassez. E o movimento surtiu resultados. “Depois dessa ação, começou a se criar um grupo que começou com duas famílias e hoje somam mais de 50 pessoas. Com os meses, o boca a boca foi crescendo e um grupo paralelo se formou de famílias que viajam juntas para diferentes lugares. Quando colocamos negros em lideranças o olhar sobre essas pessoas começa a mudar, seja para tanto para o prestador de serviço quanto para o hóspede”.

(*) Crédito da capa: Unsplash

(**) Crédito das fotos: Divulgação