Quando pensamos no futuro, era comum vir à mente aquele cenário clichê de carros voando, macacões prateados e, claro, robôs. Chegamos ao século XXI e, por hora, nada disso aconteceu. Ou quase nada. Ainda que de forma tímida, a inteligência artificial já é uma realidade presente em diversos setores da economia, incluindo a hotelaria. E aqueles que temem que as máquinas possam roubar o trabalho humano podem dormir tranquilos, pois a tendência se manterá no imaginário coletivo.

Ao abordarmos temas como maturidade digital, a inteligência artificial faz parte de uma gama de tecnologias a serem adotadas como forma de otimizar processos e entregar resultados. Principalmente em setores que demandam atendimentos rápidos e eficientes, essa pode ser uma solução.

Em segmentos como o varejo e a hotelaria, um exemplo clássico são os chamados chatbot – programas de computador desenvolvidos para simular um ser humano durante uma conversação. É fato que a tecnologia teve peso relevante no atendimento ao cliente, ainda que muitas vezes os assistentes virtuais não consigam sanar todas as necessidades de quem está do outro lado da tela.

E mais do que simplesmente atender, a inteligência artificial realiza uma rica troca de informações e cruzamento de dados que direcionam as tomadas de decisões mais complexas, além de entregar experiências personalizadas aos consumidores.

No Brasil, após três meses da publicação da Ebia (Estratégia Brasileira de Inteligência Artificial), a Câmara dos Deputados deu seu primeiro passo para a criação de um Projeto de Lei com o objetivo de desenvolver o Marco Legal da Inteligência Artificial. No início de julho, a Casa aprovou em regime de urgência a votação do texto, de acordo com a Folha de São Paulo.

A Ebia foi publicada em abril deste ano pelo Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações com o intuito de traçar um plano para que o país se desenvolva nessa área. O PL visa determinar regras, princípios, direitos e deveres para o uso da tecnologia.

De acordo com um estudo da IBM conduzido pela Morning Consult publicado em maio de 2021, o uso de inteligência artificial no Brasil supera os demais países da América Latina. Apenas 21% dos profissionais de TI (Tecnologia da Informação) da Argentina, Chile, Peru, Colômbia e México afirmaram que utilizam a IA nas empresas em que atuam. Por aqui, o índice sobe para 40%.

A pandemia teve sua participação nesse processo. No mercado brasileiro, 37% das empresas recorrem a soluções IA para o atendimento ao cliente, 35% para automação de processos e 28% para segurança.

Inteligência artificial - rodrigo teixeira

Teixeira: mapeamento de processos é ponto inicial

Inteligência artificial na hotelaria

Velha conhecida da hotelaria, a Asksuite tem a IA como o carro-chefe de seus produtos. A empresa, que já venceu na categoria de Melhor Chatbot para Hotéis do Mundo em 2020 e 2021, tem como missão unir robôs e humanos em prol de melhores resultados e redução de custos.

“A inteligência artificial está cada vez mais presente. A tendência é que passemos a utilizar mais assistentes pessoais que operam por voz, texto ou mensagens. A ideia da IA é fazer aquilo que o humano tem mais dificuldade, como uma forma complementar de trabalho”, avalia Rodrigo Teixeira, CEO da Aksuite.

O empresário ainda ressalta que, quando mesclada com interpretações de big data, a tecnologia pode ser utilizada em todos os departamentos dentro de um hotel. “Podemos colocar um PMS para rodar e uma inteligência artificial que traga insights estratégicos financeiros, de RM (Revenue Management), comercial ou de marketing. São dados importantes que a IA é capaz de interpretar, enquanto o humano fica responsável pela tomada de decisão a partir daquelas informações. É uma combinação que potencializa resultados”.

A alemã TrustYou faz o uso da IA em sua plataforma especializada em recolher e compartilhar feedbacks de usuários em diferentes plataformas na indústria, como Booking.com e TripAdvisor. Com o uso da tecnologia, a empresa auxilia hotéis a melhorarem seus serviços por meio de análises de dados. “Podemos identificar hóspedes insatisfeitos, fornecemos relatórios, entre outras soluções. Desta forma, entendemos as problemáticas de cada empreendimento ou destino, além de identificar os perfis dos consumidores, o que hoje é um desafio para o setor”, esclarece Emmanuel Richter, Key Account & Business Development manager.

Richter explica que a TrustYou gera dados detalhados por meio da IA como forma de dar maior visibilidade aos clientes. Apenas no Brasil, a companhia conta com 1263 usuários ativos na plataforma utilizando os serviços de análise e coleta de informações. “Informamos quem é o turista, qual seu grau de insatisfação, onde ele esteve e como se movimenta. A intenção é criar uma base de dados para tomadas de decisão e desenvolvimento de campanhas de marketing”.

Inteligência artificial - gabriela salomão

Tecnologia é faca de dois gumes, diz Gabriela

Uso de dados e planejamento

E esse cruzamento de dados é peça-chave para compreender o comportamento do hóspede na jornada de compra e gerar gatilhos de vendas. Gabriela Salomão, professora de Tecnologia na FIAP (Faculdade de Informática e Administração Paulista), ressalta que existe certo abstratismo quando se trata de vendas online.

“Tecnologia é uma faca de dois gumes de facilidade e abstratismo. Quando entramos em uma loja física do varejo, por exemplo, o vendedor consegue fazer uma leitura de quem é aquele cliente e o que ele precisa. No ambiente digital, isso se perde. Não sabemos quem está do outro lado. O cruzamento de dados te dá essa jornada construída e por isso essas informações são tão ricas. Quanto mais dados eu tenho, maior o meu poder de decisão”, diz a professora.

Como todas as demais soluções tecnológicas, implementar o uso da IA requer planejamento estratégico e objetivos traçados. “Um e-commerce é um bom ponto de partida, pois traz uma nova ótica do que está sendo vendido e se está rentabilizando bem. A empresa precisa pensar se aquilo é, de fato, vantajoso e se vai gerar lucro. Se a tecnologia não for beneficiar o negócio, não vale a pena”, acrescenta Gabriela.

Mapear processos e identificar demandas operacionais que possam ser automatizadas também fazem parte de um plano de implantação. “Feito isso, o hotel pode identificar as opções disponíveis no mercado que otimizem esses processos. Eu diria que as melhores oportunidades estão em operações que demandam muito tempo e pouca eficiência das pessoas”, complementa Teixeira. “Ordenar prioridades balaceando resultados, investimento e retorno”, diz o CEO.

Para empreendimentos que não possuem budget para fazer grandes investimentos, nem tudo está perdido. Richter pontua que, de cara, os custos podem parecer altos, mas muitas ferramentas são acessíveis para grande parte do mercado. “Soluções simples como chatbots, RM e personalização do atendimento não geram despesas elevadas. O setor precisa tirar o preconceito de achar que qualquer tecnologia adotada é custo, e não investimento. Costumo dizer que o tamanho do investimento aportado é proporcional ao que ele está disposto a fazer e o que quer ganhar”.

O manager da TrustYou ainda destaca que de nada adianta gastar dinheiro com ferramentas sem antes investir em pessoas. “A IA veio para auxiliar a parte humana. E antes de pensar em investir em tecnologia, os hotéis devem investir em pessoas e reavaliar seus produtos. Sempre que uma ferramenta nova é implementada, é preciso haver uma preparação da equipe”.

Sabemos que atualmente soluções tecnológicas se tornam obsoletas com rapidez, mas a velocidade da evolução do mercado também tem seus pontos positivos. Com o passar do tempo, as ferramentas vão barateando seus preços. “Um exemplo são os robôs de limpeza. É um tipo de tecnologia que vem sendo barateada mês a mês. E a tendência é que os preços sejam ainda mais reduzidos com o passar dos anos. O orçamento precisa acompanhar as demandas de cada empreendimento. Outra solução é contratar profissionais que estão atuantes no mercado para prestar consultorias e mentorias”, pontua Teixeira.

Inteligência artificial - emmanuel richter

Richter: pessoas devem ser prioridade

A polêmica do reconhecimento facial

Recentemente, o Aeroporto de Congonhas, em São Paulo, implementou um projeto piloto de reconhecimento facial. A novidade visa reduzir filas e tempo de embarque dos passageiros no terminal mais movimentado do país. Ainda que a tecnologia pareça ser o suprassumo da digitalização, há quem não veja a ferramenta com bons olhos.

Para se ter uma ideia, existe até mesmo um site exclusivamente criado para fazer campanha contra o reconhecimento facial nos comércios. O Ban Facial Recognition traz uma lista de empresas que fazem o uso da tecnologia e uma petição para o fim do uso da IA.

“Compartilhar o próprio rosto é extremamente mais sensível do que qualquer outro dado pessoal. Ainda que leis como a LGPD sejam criadas, vivemos em um país onde esse tipo de legislação ainda é falha. Temos nossos dados publicados o tempo todo. Se eu entro em um e-commerce ou em uma rede social, isso é público. Empresas estão compartilhando e vendendo essas informações a todo momento. Sou a favor da proteção, mas sabemos que isso gera negócios”, avalia Gabriela.

A evolução da IA

Enquanto não contamos com um robô para fazer as tarefas domésticas mais enfadonhas do dia a dia, à la Rosie, dos Jetsons, podemos sonhar com um mercado que utilizará amplamente as assistentes virtuais, como a Alexa, desenvolvida pela Amazon. E a tendência tem tudo para se expandir com o advento das smarthouses e smartcities.

“O mercado 5G será massificado em algum momento, o que permitirá que a internet como conhecemos hoje seja muito mais veloz. Isso facilitará o uso dessas inteligências em cidades e casas. A televisão, ar condicionado, geladeira, tudo será integrado em um roteador único operado por comando de voz. Essas assistentes virtuais saberão sua agenda, programas de TV preferidos, a hora que você chega em casa. E essa tendência pode ser aplicada em carros e cidades para gestão de energia, água, wi-fi, com o intuito de fomentar essa base de dados”, prevê Gabriela.

Entretanto, para o futuro acontecer, é preciso haver investimento por parte também dos agentes públicos. E um belo exemplo de governo que incentiva a digitalização das empresas é a Alemanha, que ofereceu subsídios para companhias afetadas pela pandemia. Além de auxiliar na manutenção das contas mensais, hotéis, restaurantes entre outros negócios podem utilizar até € 20 mil como investimento em tecnologia, medidas de modernização estrutural ou implementação de conceitos de higiene.

“Muitos hotéis na Alemanha (além de se manter durante a pandemia pagando suas despesas normais) utilizaram e ainda utilizam esse subsídio para implementar novas tecnologias em suas propriedades, tais como: contactless check in/out, Comunicação virtual com os hóspedes in house utilizando plataformas como a TrustYou Live Experience ou outro provedor, novos sistemas de aberturas de portas por celular (evitando cartões de aberturas ou chaves), entre outros”, comenta Richter.

Como será o futuro, ainda é difícil prever. Mas uma coisa é certa: enquanto a implantação de tecnologias estiver apenas nas mãos do setor privado, o Brasil dificilmente engatará um ritmo diferente em sua transformação digital.

(*) Crédito da capa: Unsplash

(**) Crédito das fotos: Divulgação