Quem já visitou pontos turísticos famosos internacionalmente como o Museu do Louvre, a Torre Eiffel ou até mesmo o Cristo Redentor, sabe a dificuldade de apreciar com conforto os atrativos. Longas filas, celulares em punho para selfies e empurra-empurra são alguns dos perrengues que o Instagram não mostra. Se o overtourism era um problema em destinos de todo o mundo, a pandemia fez o que parecia ser impossível: deixou esses espaços desabitados. Com a retomada iminente das viagens, o que já era ruim pode ficar pior.

Em tradução livre, overtourism significa “turismo em excesso”. O conceito é um velho conhecido do setor, tanto que, em 2018, o Oxford English Dictionary escolheu essa como uma das palavras daquele ano. A questão chamou a atenção para como o turismo de massa afeta o dia a dia dos moradores e do ecossistema local.

O problema é abertamente exposto também no documentário Crowded Out: The Story of Overtourism, que mostra depoimentos de residentes de cidades como Barcelona e Veneza e os impactos do turismo de massa em suas vidas e rotinas.

Com a chegada do coronavírus, o setor enfrentou uma crise nunca antes vista e teve suas atividades quase que completamente interrompidas. E o que antes era um problema de excesso deu lugar a falta. Ainda que estejamos vivendo a ponta do iceberg da retomada da indústria de viagens, o momento pede a revisão de como os destinos lidam com efeitos negativos do turismo e como torná-lo menos predatório.

No estudo Insight para o Turismo, desenvolvido pela Trvl Lab, 56,83% dos respondentes afirmaram que pretendem conhecer lugares novos após a pandemia e outros 81,13% desejam viajar para descansar. Desse montante, 74,84% escolheram como nicho preferido destinos de sol e praia e 56,98% pretendem viajar pelo Brasil.

Diante de um dos setores mais afetados pela crise, a demanda reprimida é muito aguardada e incentivada. Com sede para repor os caixas minguados pelo esvaziamento de turistas, diferentes elos da cadeia turística brigam pela captação de clientes sem pensar nas consequências do efeito manada.

“É uma equação difícil, pois após um período como esse, existe um desejo dos empresários de aproveitar essa retomada ao máximo para compensar a crise, especialmente no verão. Entretanto, é importante ressaltar que não é algo sustentável a longo prazo, visto que o próprio turista busca por destinos menos tumultuados”, explica Carolina Haro, sócia da Mapie.

overtourism - carol haro

Altas demandas não são saudáveis a longo prazo, diz Carolina

Overtourism: o lado do turista

Se antes os visitantes se espremiam para tirar uma foto do quadro da Monalisa, no mundo pós-pandêmico pode ser que a situação seja outra. Jeanine Pires, ex-presidente da Embratur e sócia da Matcher, afirma que o fenômeno do overtourism continuará sendo um desafio, mas que a mudança de comportamento do turista pode ser um aliado.

“A sobrecarga dos destinos não vai desaparecer, mas o que deve ocorrer são visitantes com comportamentos diferentes. Muitas pessoas vão evitar destinos cheios por medo do contágio, mas isso vai depender do tipo de viagem e da motivação. Alguns turistas querem agito e outros momentos de tranquilidade”, pontua Jeanine.

E o excesso de pessoas concentradas em um mesmo destino ou atrativo é prejudicial para ambos os lados. Enquanto o morador sofre as consequências de ter sua cidade invadida por visitantes, o próprio turista acaba por ter uma experiência ruim e não retornando. “O risco de desapontar e não atender bem o cliente é grande, o que pode se tornar um problema a longo prazo, manchando a reputação do destino”, acrescenta Jeanine.

Uma das cidades fetiche dos brasileiros, Gramado (RS) tem dois momentos importantes durante o ano: a alta temporada de inverno e o Natal Luz. O destino, que já passou por muitos problemas desde mobilidade urbana até falta de água, viu sua população residente se revoltar contra os visitantes.

“Gramado possui 37 mil habitantes e já recebeu nove milhões de turistas. É um caso clássico de overtourism, chegando a um ponto onde os moradores e visitantes não conseguiam ter um convívio harmonioso”, conta Rafael Almeida, ex-secretário de Turismo do destino e diretor executivo na Visão – Agência de Desenvolvimento da Região das Hortênsias. “Existe uma preocupação para que o turismo seja um fator de desenvolvimento sem prejudicar o habitante”, completa.

overtourism - jeanine pires

Mudança de comportamento pode ajudar, afirma Jeanine

Soluções práticas

Equilibrar a sobrecarga de visitantes é um trabalho multidisciplinar entre as iniciativas pública, privada e comunidade local. Almeida destaca que apenas ações de órgãos do governo não são suficientes para resolver o problema, mas descentralizar os atrativos turísticos é um passo importante para desafogar as demandas.

“Países como a França vem trabalhando na divulgação do turismo em outros destinos além de Paris. É uma forma de pensar no regional e criar experiências para os viajantes. A Rua Coberta, em Gramado, é onde tudo acontece e sofre com overtourism em alta temporada. Eu acredito no diálogo e no associativismo empresarial como pilares importantes nessa questão”, diz o executivo.

Apesar de ser um problema que muitos visitantes sabem que irão enfrentar ao viajar, Jeanine sugere que atrativos com maior concentração de pessoas trabalhem com horários como forma de diluir o volume. “Maceió, por exemplo, tem um letreiro para foto. A cidade pode tentar minimizar a aglomeração construindo um segundo. Os destinos precisam pensar em gerar novos atrativos e produtos, mas cada lugar tem a sua realidade”.

Outros fatores como sazonalidade, hospedagem e infraestrutura fazem dessa equação ainda mais complexa para encontrar o equilíbrio entre oferta e demanda. Carolina explica que mapear os potenciais dos destinos e trabalhar de forma coordenada para que os viajantes se espalhem por todos os pontos é uma saída viável.

“Agendamentos por aplicativos, informativos de capacidade total e volume de pessoas e recomendação de horários de menor fluxo podem contribuir para a divisão da demanda nas atrações. É preciso também estabelecer uma parceria com as secretarias e associações. Cabe ao gestor e demais players terem a visão a longo prazo para não gerar uma insatisfação no turista. Na retomada, vamos ter um overtourism em destinos de verão, mas acredito que com o tempo essa demanda se acomodará”, prevê.

Um case de sucesso de associativismo é a própria Região das Hortênsias. A Visão atua há 22 anos no setor, sem membros públicos, mas com a participação de empresários. “Essa união formou o Gramado CVB, que hoje atrai 400 eventos corporativos por ano, com visitantes de renda média de R$ 7 mil que gastam no comércio local comprando couros, vinhos, chocolates e artesanato”, destaca Almeida. A empresa também faz parte de conselhos municipais que debatem diretrizes para o desenvolvimento do turismo na cidade.

“O poder público precisa olhar para sua capacidade de acesso, transporte público e limite de visitantes. Muitos destinos mundiais têm dificuldade em gerir as demandas, mas Bonito, por exemplo, conseguiu fazer o controle da capacidade de suas atrações e tem gestão. É preciso pensar em um turismo com uma base mais comunitária e menos impactante”, acrescenta Carolina.

overtourism - rafael almeida

Almeida: associativismo é essencial

O papel da hotelaria

Um dos segmentos mais relevantes do setor e também um dos vilões do overtourism, a hotelaria tem um papel crucial na resolução do problema. É natural e compreensível que os empresários busquem compensar suas perdas neste momento, mas prezar pela experiência do visitante deve ser prioridade.

Em Gramado, o crescimento acelerado da oferta hoteleira contribuiu para o excesso de volume de viajantes. “Quando a oferta é elevada, temos um problema sério em manter uma ocupação média adequada e a cidade fica intransitável. Nós tínhamos 19 mil leitos e com previsão de novas entregas, nos aproximando de um leito per capita, o que é algo desafiador”, alerta Almeida.

E muito além do bem-estar do hóspede, os empreendimentos precisam levar em consideração a rotina dos funcionários, em sua maioria moradores da cidade. “O colaborador precisa chegar no trabalho no horário e, se isso não acontece, atrapalha o funcionamento da empresa. É possível reduzir a quantidade de clientes sem perder faturamento, oferecendo maior valor agregado”, acrescenta o executivo.

O crescente interesse do setor imobiliário em diversos destinos já altamente visados, como Gramado, Olímpia e Jericoacoara, reforça a necessidade de repensar as logísticas internas e estruturais de cada cidade. Almeida pondera, dizendo que o investimento é sempre bem-vindo, mas é necessário cautela para não descaracterizar os locais.

“Temos empreendimentos enormes chegando com o interesse imobiliário por meio de multipropriedades. É preciso ter um diálogo forte entre os setores para que as pessoas que vivem do turismo direta ou indiretamente entendam que não é viável esgotar recursos que no futuro serão importantes. Do contrário, vamos sempre acabar com a galinha dos ovos de ouro, como já vimos em destinos consolidados que começaram a ter problemas de estrutura, que ao longo do tempo caíram no esquecimento”, finaliza Almeida.

(*) Crédito da capa: Unsplash

(**) Crédito das fotos: Divulgação