No pelotão principal das profissões mais vulneráveis à Covid-19, as camareiras precisam de doses diárias de coragem e saúde mental, aliadas aos protocolos de segurança, para partirem à batalha. Do percurso ao trabalho, durante o expediente e até a volta para casa, são momentos tensos do dia-a-dia desta e outras classes profissionais que não possuem o privilégio do home office. Quais são os relatos dessas pessoas?

Antes, um dado importante e que ilustra a importância de dar atenção ao momento vivido nesta profissão. De acordo com estudo da Capih (Comissão de Administração de Pessoal da Indústria Hoteleira), publicado em março, mais de 10 mil postos de trabalho foram fechados durante a pandemia. Destes, 43% pertencentes ao setor de governança, ao qual as camareiras fazem parte.

Em meio essa situação que a faca de dois gumes se apresentou para duas camareiras que aceitaram conversar com a reportagem do Hotelier News. Para garantir o anonimato de ambas, serão usados nomes fictícios para contar suas histórias. A primeira, então, é Jaqueline.

O que é pior?

Morando com seu filho e seus pais, Jaqueline (21) leva duas horas para chegar ao trabalho, saindo da Zona Sul de São Paulo. No hotel dela, aproximadamente 150 pessoas foram demitidas em 2020. O trajeto é percorrido com ônibus e metrô.

“O dia-a-dia não teve muita mudança. Voltei a trabalhar após oito meses em casa e senti diferença nos protocolos de sanitários, que ficaram mais rígidos. No restante, trabalho das 8h às 18h, uso meus materiais de segurança (avental, duas luvas, duas máscaras e óculos) e sigo minha rotina. Alguém precisa trabalhar em casa”, diz.

A única renda da família é do trabalho de Jaqueline na equipe de camareiras do empreendimento. Ela conta que verifica os apartamentos limpos, arruma aqueles que estão ocupados, troca enxoval (se necessário), limpa e repõem amenities ao longo do dia. Parece simples, mas adicionar a pandemia nesta equação deixa tudo mais desafiador.

Camareiras

Jaqueline: tinha medo de entrar nos quartos quando voltei ao hotel

 

“Em novembro do ano passado, quando voltei a trabalhar, a sensação era estranha. Queria retornar, já que gosto do que faço, mas tenho um filho de quatro anos e pais acima dos 45 anos. Sem vacina, sem nada. O risco começou a partir do momento que coloquei os pés para fora de casa pela primeira vez. Além disso, não é todo hóspede que avisa e tem a consciência de ficar em casa quando está doente. Na verdade, a minoria faz isso. Então qualquer tosse nos já estranhávamos e ficava aquela insegurança de entrar no quarto. Não sabíamos bem como a doença funcionava, afinal”, conta Jaqueline.

Ninguém na casa dela se infectou com a Covid-19, “graças a Deus”, como disse durante a nossa conversa. Até por isso, junto ao avanço da vacinação no país, o medo do desemprego e do próprio vírus está diminuindo. “Ainda tenho aquela apreensão da infecção, mas estou mais tranquila no trabalho. O retorno dos pequenos eventos também deve evitar que surjam demissões. Mas, na verdade, eu nunca tive muita escolha. É claro que a doença pode matar alguém da sua família e isso não é aceitável. Por outro lado, se eu não trabalhar e continuar viva, vou viver do que?”, finaliza.

Ensinamentos

A outra personagem encontrada é Luiza — ou Dona Luiza. Com 39 anos, o trabalho como diarista, antes de se tornar uma das camareiras do hotel, parece ter servido para engrossar a ‘casca’ de resiliência. Com dois filhos e um marido, ela sai da Zona Leste da capital paulista às 6h e leva 1h20 para chegar ao trabalho. Feliz com o que faz, ela dá os pitacos sobre a retomada do setor.

Camareiras

Desemprego x Covid-19?

“É bom demais ver mais gente no hotel. Isso representa mais serviço e que o setor está melhorando aos poucos. Por outro lado, nós, camareiras, precisamos nos proteger ainda mais do vírus”, diz. Nos primeiros dias da pandemia, em março de 2020, Luiza afirma não ter ficado confusa com a situação. A gravidade, de fato, só foi entendida quando as notícias se repetiam na televisão e, em seguida, estabelecimentos começaram a fechar.

Após ficar pouco mais de oito meses em casa, com o contrato refeito aos moldes da MP 936, a profissional voltou em dezembro ainda apreensiva, mas com o mesmo sentimento da outra camareira, Jaquelina. “Se a gente não sair para trabalhar, é pior. Ficar em casa deixa a gente com mais medo e a volta aos trabalhos melhorou isso, por mais que também fosse um risco”, complementa Luiza. Uma das preocupações era a mesma de muitos trabalhadores: familiares.

Mesmo com esse medo, guiado principalmente por não saber a origem e forma de contaminação do vírus, o uso dos equipamentos deixou Luiza mais tranquila. “Entrar no quartos era preocupante, mas usei e uso todos os produtos fornecidos. Nada nos garante 100%, mas só de usar máscaras e luvas, temos mais chance de não sermos infectados”, pontua.

Ao futuro, quase como votos, Luiza espera que a vacina proteja sua família e o restante das pessoas. Além disso, de todo o mal que a pandemia trouxe, a camareira acredita que o valor à família, amigos e trabalho deve aumentar. “Espero que a pandemia não demore a passar e que, depois dela, valorizemos mais as relações com quem amamos. Desde o trabalho até os momentos de lazer. Amo o que faço, mas quero fazer isso sem a pandemia”, conclui Luiza.

Camareiras: visão geral

Para saber a opinião de quem mais entende da função, Maria José Dantas, presidente da ABG (Associação Brasileira de Governantas e Profissionais de Hotelaria), foi procurada. Questionada sobre a situação do mercado e as apreensões das camareiras, em sua visão, ela explicou que o desemprego é, de fato, o principal motivo de medo.

“A situação é extrema. Muitas famílias perderam sua renda, completa ou parcialmente, e as camareiras são, muitas vezes, responsáveis pela totalidade da renda familiar. Além disso, a pandemia deixou o mercado mais enxuto e, mesmo na retomada, as contratações continuam lentas”, explica. Segundo ela, alguns hotéis contratam diaristas — sem vínculo empregatício — para o serviço.

Em retorno a questão de saúde mental das camareiras, Maria José cita que o acompanhamento às camareiras, principalmente neste período, é recomendável. O mundo ideal esbarra, contudo, na própria cultura hoteleira geral do Brasil, que nem sempre tem essa preocupação.

“Algumas empresas hoteleiras já oferecem esse suporte no setor de RH (Recursos Humanos). A percepção do trabalho em ambiente seguro e a preocupação dos gestores com a saúde das equipes também contribuem para a saúde psicológica do colaborador”, cita.

Por fim, ela admite que o medo de adoecer é comum a todas equipes, principalmente aos que atuam dentro das acomodações — como camareiras. No entanto, além da Covid-19, ela alerta a importância da atenção dos gestores.

“A conscientização não deve se limitar às rotinas internas de trabalho. É importante conscientizar todos sobre a necessidade de cuidados nas rotinas do dia a dia, em casa e no transporte até o trabalho”.

(*) Crédito das fotos: Pexels