José Ruy Veloso Campos
(foto: divulgação/Camila Gutierrez)

O livro Catch 22, de Joseph Heller (1923/1999, EUA) foi escrito entre 1953 e 1961, quando foi publicado. É, senão a melhor, das melhores obras ambientadas a 2ª Grande Guerra, já publicadas. Em 1970 Mike Nichols dirigiu o filme sob o mesmo nome, estrelado por figuras como Orson Welles, Art Garfunkel, Jon Voight, Anthony Perkins, Martin Sheen e outros.  

O significado de Catch 22 (Ardil 22, no Brasil) passa pela lógica. Em português tem o sentido de ardil, sinuca de bico, e até a Escolha de Morton (uma escolha entre duas alternativas igualmente ruins). 

No livro, Heller monta uma situação na qual os pilotos de bombardeiros, apavorados com o perigo das missões, buscam passar por consultas médicas para conseguir dispensa dos voos. Na compreensão dos médicos, no entanto, eles estão lúcidos e aptos para voar. Sim. Porque ter medo da morte e, portanto, de suas missões, é inerente ao ser humano. E normal. De outro ponto de vista, se o piloto aceitasse uma missão daquela natureza, teria que ser considerado insano, dado o grau de periculosidade. Ao pedir a avaliação médica, automaticamente, ele era considerado um piloto sadio, normal. Pessoas com problemas mentais ou emocionais, não pediriam um exame. Estavam, portanto, aptos a voar. No way out.

O livro, como o filme, é muito interessante. E enseja reflexões de toda a ordem. 

Lendo o livro ou vendo o filme nos é possível (re) pensar o papel do Estado, das relações interpessoais, das relações empresariais e das diferentes estratégias da administração. E o Ardil 22 às vezes se nos apresenta em diferentes formatos nos diferentes mercados.

Congelemos esse conceito por algum tempo. Tratemos agora da Uber.

Conhecido aplicativo para o transporte compartilhado, a empresa Uber vem ganhando espaço e legalidade em muitos países, Brasil incluído, para horror dos taxistas e frotas de taxis. E agora avança sobre a entrega de comidas. Sim, comidas.

O UberEats está em Nova York, Londres, Toronto, Los Angeles, Atlanta, Melbourne e outras localidades que, certamente, já estarão incluídas até que essa matéria seja postada e lida. O esquema é o mesmo do aplicativo para o serviço análogo ao dos táxis. O sistema oferece várias opções de comidas e seus cardápios. Quando o cliente faz a escolha, o aplicativo localiza o restaurante mais próximo ao usuário/solicitante ou, se a demanda naquele ponto de venda estiver muito alta, outro tão próximo quanto possível e, ao mesmo tempo, localiza também o veículo cadastrado que pode fazer a entrega. Tudo muito rápido e já debitado no cartão de crédito do solicitante, sem a neura de troco, recibos, roubos etc.

O UberEats opera em seis países e está numa briga muito grande na Europa, no Reino Unido, mais especificamente. Só em Londres a empresa firmou contrato (até junho pp) com mais de 150 restaurantes, alguns dos quais já tinham contratos com a Deliveroo, a mais organizada e financiada empresa iniciante no ramo das entregas na Europa e que cresceu muito em três anos. A Deliveroo está na mira da UberEats. 

Nos últimos cinco anos o mercado de comida para viagem no Reino Unido cresceu de 4,7% para 6,7 bilhões de libras. Isso atraiu muitas startups que, por sua vez, receberam bons investimentos. 

A Deliveroo tem seu foco em restaurantes que não possuem seus próprios entregadores. E forma uma rede de mais de três mil ciclistas e motoqueiros autônomos na entrega de alimentos para mais de 2,5 mil restaurantes, só em Londres. O sucesso desse grupo atraiu a atenção de investidores. Um deles, Yuri Milner, que foi apoiador inicial do Facebook, Airbnb e Alibaba, investiu mais de US$ 100 milhões, em 2015, para a expansão na Ásia, Oriente Médio e Austrália. Agora a Deliveroo, essa bem sucedida empresa, avaliada em US$ 600 milhões e atuando em doze países, poderá ser engolida pela UberEats. 

A Uber é conhecida por investir pesado em novos mercados e liquidar a concorrência. Além de um caixa de US$ 11 bilhões, a empresa recebeu também investimentos da ordem de US$ 3,5 bilhões do fundo soberano de investimentos da Arábia Saudita. A UberEats pretende entrar para valer no Continente Europeu. 

Para alguns observadores a política da UberEats chega a ser cruel. Enquanto a Deliveroo exige um consumo mínimo de 15 libras para a entrega da comida, a UberEats não tem exigência de consumo mínimo e nem cobra taxas dos clientes, embora tenha a previsão de cobrar cerca de 2,50 libras de taxa de entrega. Nesse momento inicial a empresa está oferecendo um crédito de 20 libras para os clientes cujos pedidos demorarem mais de meia hora para serem entregues.

Outras empresas do ramo de aplicativos de entrega como Just Eat, Delivery Hero e Take Eat Easy estavam competindo entre si na Europa. E agora têm a UberEat pela frente.

Nos EUA a Amazon atua em doze cidades atendendo assinantes do serviço Prime e, de acordo com observadores desse mercado, apenas a Amazon e a UberEat têm capacidade logística para enfrentar a forte demanda por esses serviços nos finais de semana. As demais não conseguem dar aos entregadores mais de duas entregas por hora.

A Uber sintetiza um modelo de investimento e de apropriação de determinados tipos de serviços sem investir na base de produção. Um desafio à Mais Valia.

A Uber não possui carros, não têm motoristas e nem paga licença de carros ou sua manutenção. Mas vem dominando o serviço de transporte individual (ou compartilhado) análogo aos táxis tradicionais, mundo afora. A Uber tampouco compra farinha, têm fornos ou elabora molhos de tomate com queijo derretido. Mas já é a maior entregadora de pizzas no Reino Unido e em várias cidades dos EUA.

Quanto, ou o que, falta para que essa empresa comece a vender hotéis?
E como será sua atuação frente aos aplicativos hoje existentes? 
Como será a reação dos hotéis diante de mais esse (cruel?) aplicativo?

Voltamos ao Ardil 22. A questão é que se hotéis decidem ficar fora desse tipo de aplicativo, parecem estar perdendo suas boas oportunidades de venda num universo onde, cada vez mais, o preço é o primeiro dos fatores determinantes para a decisão de compra de um meio de hospedagem. 

Assim, se um hotel se recusa a entrar nesse esquema, o dos aplicativos, pode ser considerado um suicida de médio e longo prazo, porque não estará ao alcance fácil dos que buscam um destino qualquer através desses instrumentos que tendem a dominar os mercados de vendas de serviços. 

Numa outra mão de direção, se o hotel entra nos aplicativos, corre o risco de se expor, de banalizar a concorrência e de alinhar seus preços sempre em razão das promoções do aplicativo que, por sua vez, o alinha aos concorrentes, o que nem sempre é bom para os negócios de diferentes empresas. Nos aplicativos existentes hoje já é assim. E tais riscos são inerentes ao sistema de vendas adotado pelos hotéis e pelos aplicativos em suas promoções.

A elucubração aqui é com o esquema Uber de ofertas imperdíveis para demolir os concorrentes e suas consequências para os prestadores de serviços.

A impressão é a de que não restarão muitas alternativas para boa parte da indústria hoteleira. 

Se ficar de fora desses aplicativos pode não ser bom, entrar não garante sucesso nas vendas. Sobretudo num mercado recessivo como o brasileiro que, de acordo com previsões dos especialistas em economia e finanças, só deve começar a melhorar depois de 2018. 

Mas viajo um pouco mais no Catch 22. Num dado ponto do livro um dos personagens diz algo como 
“O Estado não sabe fazer a guerra. Devia deixar isso para o setor privado. As empresas privadas são mais objetivas, menos ideológicas e mais eficazes…”.

Imaginemos, nessa perspectiva, o Estado terceirizando para a Uber alguns serviços de seu portfólio, como os complexos prisionais ou a patrulha de fronteiras. No mesmo esquema de recrutamento para o transporte ou a entrega de comidas, a empresa juntará gestores e pessoal operacional, todos obedecendo ao aplicativo. Sim, porque se não seguirem todos os passos de cada operação ali definida esses prestadores de serviços não receberão seus pagamentos. E não faltará gente para patrulhar fronteiras, presídios e até trabalhar em outra Olimpíada. Por um custo muito menor e eficácia a ser medida…

Não ria.

O futuro está muito mais próximo da ficção cientifica do que imaginamos.
Comece a olhar melhor para o seu hotel.
Consegue ver o espectro da Uber vagando pelas suas paredes numa taxa de ocupação abaixo de 50,38%? 

(Fontes: Lauren Fedor, Financial Times/ Valor)

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José Ruy Veloso Campos é mestre em Comunicação e Turismo pela ECA/USP, Especialista em Gestão Educacional pela UNICAMP, graduação em Letras pela Universidade S Francisco, Marketing Hoteleiro pelo Centro Internacional de Glion.

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